"You come across as standoffish", dizia-me a a J.P. depois de eu contar que há umas semanas, quando estava com alguma pressa, os vizinhos apanharam-me na rua, começaram a falar comigo e nunca mais se calavam. Como nunca tinham conversado tanto comigo, desde que eu me mudei para a vizinhança, há três anos e meio, estranhei o incidente. Depois da explicação da J.P., como é de praxe quando nos rotulam de antipáticos, tentei explicar o meu comportamento.
Acontece que, quando ando a passear pela rua, tenho a mente ocupada por coisas que, para mim, são muito importantes: os pássaros a cantar, as flores que estão no auge, as árvores e as espécies de plantas que sobrevivem nos seus troncos, os jardins dos vizinhos, etc. Para além de ouvir podcasts, claro; se bem que, no outro dia, a minha outra vizinha disse-me que algumas pessoas tinham sido assaltadas na vizinhança enquanto passeavam e rapinaram-lhes os telemóveis, o que me levou a considerar se devia ouvir ou não...
É frequente, por exemplo, ir pelo passeio à cata de minhocas suicidas, que são aquelas que se descuidam e saem da terra para o passeio e, em vez de voltar para trás, ficam ali e não conseguem sair: começam a ficar coladas ao passeio e acabam por morrer. Quando chove muito, é ver os passeios cheios de cadáveres de minhoquinhas, o que me entristece profundamente. Então, costumo passear tentando prestar atenção ao chão e, sempre que vejo uma minhoca ainda viva, recolho-a, e meto-a na relva. Ou seja, não é que eu seja uma pessoa antipática para as pessoas; sou é mais simpática para com as minhocas. Também ofereci a história do gamba como prova de simpatia, mas ainda não vos contei essa.
A J.P., incrédula, explicou-me como se tratam as minhocas: vai-se à pesca com um balde cheio delas, e enfiam-se num anzol, a todo o comprimento, para servirem de isco para os peixes. É para isso que servem as minhocas. Pode ser, até porque me lembro de apanhar uma e dá-la a comer aos meus girinos no ano passado, mas depois senti-me culpada e só lhes dei minhocas que encontrei já mortas, para além da alface biológica ligeiramente cozida em água a ferver e congelada em cuvetes de gelo, claro!
Regressando às teorias de antipatia/simpatia, de vez em quando vou ao Starbucks para ler. Um dos livros que já levei foi "A Hora da Estrela" da Clarice Lispector. Uma rapariga começou a falar comigo por ver que eu estava a ler em português. Ela também era portuguesa, mas não conhecia quase nenhuns portugueses em Houston. Na altura, eu também não. Trocámos número de telefone para nos voltarmos a encontrar e, no dia combinado, enviei-lhe um SMS. Respondeu que estava ocupada e pediu que eu lhe escrevesse mais tarde. Foi o que fiz, mas ela deixou de responder. Fiquei chateada. Ora estava eu a ler o meu livro em paz, para que é que ela me incomodou com ofertas de amizade não-sinceras?
Outras vezes vou ao Starbucks para trabalhar no meu tapete de Arraiolos. Aposto que, quando estou concentrada a espetar a agulha na serapilheira, devo ter uma cara muito antipática -- que sentido teria estar a sorrir para o tapete?!? Mesmo assim, várias pessoas vêm falar comigo. Umas acham interessante o que estou a fazer, outras querem que eu saiba que conhecem outras pessoas que também têm passatempos parecidos.
Foi o que aconteceu há duas semanas, em que um senhor me disse que a esposa também fazia crochet. Eu tentei explicar-lhe que aquilo não era crochet, mas para ele era tudo crochet e parece que a esposa fazia mantas de retalhos, ponto cruz, meio-ponto e, se calhar, crochet. Depois começou a falar dos seus hobbies: ele monta carros de estilo antigo, chamados de roadsters, como o da foto, que era o último em que estava a trabalhar. Compra as peças pela Internet, monta os carros, e depois vende. As peças custam menos de $5.000 e ele vende-os por $37.000.
Perguntei-lhe se fazia carros por encomenda, mas ele não gosta. Prefere fazer ao seu gosto e não gosta de fazer dois iguais; já personalizou alguns, mas não gostou da experiência e decidiu deixar de o fazer. Começou a interessar-se pelo hobby quando ainda trabalhava, mas demorava mais de três meses a completar um carro. Agora está reformado, vai fazer 10 anos, e em um mês monta um carro.
Parecia ser uma pessoa simpática; mas, se calhar, eu e ele partilhamos o mesmo tipo de antipatia.
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