Como qualquer órgão de soberania num
Estado de Direito democrático, os Tribunais devem aprender a conviver com a
divergência quanto às decisões por si proferidas. As mesmas são, por isso
mesmo, em regra, susceptíveis de recurso, embora, fruto de sucessivas reformas,
em condições cada vez mais apertadas e de modo que, em alguns segmentos
normativos vigentes, temos por inconstitucionais.
Também é verdade, por outro lado, que
passagens relativas a fundamentação dessas decisões devem ser lidas em todo o
seu contexto e explicadas, de modo a não cedermos a populismos fáceis ou a
linchamentos públicos cada vez mais vorazes nas actuais sociedades da
informação. Quero ser muito claro: não patrocino de modo algum – e julgo que a
esmagadora maioria dos cidadãos, juristas ou não – a polémica passagem do
acórdão da Relação do Porto. Ela reflecte uma visão inconstitucional e ilegal
da posição da mulher na sociedade e da igualdade entre estas e os homens, para
além de uma palmar violação da separação entre Direito, Religião e Moral, algo
que se aprende nas primeiras aulas nos bancos das Faculdades de Direito. Isto
dito, a honestidade intelectual deve impelir-nos a uma análise mais séria da
questão e que não se fique pela espuma dos dias ou por proclamações que,
podendo ser populares, não são tecnicamente exactas.
No caso dos autos, a condenação em 1.ª
instância já havia considerado que a existência de uma relação extramatrimonial
da ofendida, a qual se provou ter conduzido a uma depressão que reclamou
internamento hospital do ex-marido, um dos co-arguidos, devia ser tida em conta
como um dos fundamentos para suspender a execução da pena de prisão. O que o
tribunal superior fez foi confirmar essa valoração de Direito, tendo em conta os
factos dados como provados na então Instância Local Criminal de Felgueiras.
Tirando casos excepcionais, o sistema jurídico-penal português erige a prisão
como último recurso, conhecidos que são os seus efeitos criminógenos. Daí que,
sempre que o julgador entenda que as finalidades da punição podem ser atingidas
através de uma pena cumprida na comunidade, deve dar-lhes preferência. Foi
exactamente isso que a 1.ª instância fez, o que a Relação confirmou. Podemos
discutir se as concretas circunstâncias do caso em que houve comparticipação do
ex-marido e do ex-amante, com sequestro da ofendida e o instrumento usado na
agressão, demandariam ou não a aplicação de uma pena efectiva de privação da liberdade.
Sublinho apenas que, em casos semelhantes em que os arguidos são primários e em
que a 1.ª instância deu como provado o arrependimento sincero do ex-marido, não
me recordo de nenhuma decisão de um Tribunal português que se não tivesse
decidido pela condenação, mas suspendendo a sua execução, mediante deveres,
regras de conduta ou regime de prova.
Dito de outra forma: não fora aquelas
considerações desastrosas e que admitem uma leitura de que aqueles concretos
Desembargadores partilham um quadro de valores inconstitucionais e ilegais, o
acórdão da Relação do Porto seria tido como técnico-juridicamente normal. Este
é um ponto que não tenho visto suficientemente esclarecido. Claro que se pode
discutir se desejamos um sistema mais encarcerador e uma diminuição aplicativa
das medidas substitutivas. Da minha parte, já propus um conjunto de alterações
legislativas sobre esta matéria, para que as penas de substituição não sejam
uma “descriminalização encapotada”, para que as mesmas sejam eficazes e
sentidas como efectivas pelo condenado e pela sociedade, sob pena de se brincar
à Justiça e de essas penas serem somente um mecanismo de luta contra a
sobrelotação prisional e os custos da administração da Justiça.
O que este – de entre outros polémicos
acórdãos, desde a “coutada do macho ibérico”, de 1989, para me ficar por aqui –
aresto revela é a urgente necessidade de os magistrados e advogados terem
formação nas suas licenciaturas e ao longo da vida profissional em Psicologia
Forense ou da Justiça. Em boa hora, na passada semana, a Ordem dos Psicólogos
organizou, no Porto, um colóquio em que essa urgência foi sublinhada. O Centro
de Estudos Judiciários tem realizado um meritório esforço, nos últimos anos, em
levar essa formação aos seus auditores e em oferecê-la aos magistrados em
funções. Mas é claramente necessário mais, como este exemplo ilustra. Do mesmo
passo que se não compreende como possa um psicólogo forense licenciar-se sem
ter noções básicas de Direito e Processo Penais.
Mais ainda: o perfil psicológico no ingresso
na magistratura é avaliado, sendo uma componente excludente do concurso. E
depois de estarem a trabalhar nas comarcas, existe mais algum controlo? No
âmbito da medicina do trabalho, funções de soberania como esta – e não só –
deveriam ser submetidas a um escrutínio por técnicos especializados. Quem serve
a Justiça e tem nas suas mãos – em nome do Povo – a nobre missão de decidir sobre
a vida das pessoas, deve ter a necessária saúde física e psicológica. Sendo
muito claro, como pretendo ser: não se tome a nuvem por Juno – os magistrados
são, na sua esmagadora maioria, pessoas avisadas, conscientes e que incorporam
os valores que o ordenamento jurídico-penal lhes impõe (como a qualquer
cidadão), vertido na Constituição e nas leis. Mas quem desempenha funções de
tanto relevo – e aqui também coloco os médicos, os professores, os membros de
órgãos e serviços de segurança, de entre outros – deveria ser submetido a este
particular despiste médico.
Todos os operadores judiciários, em
especial os que lidam com o Direito Penal, deveriam ter formação e
conhecimentos essenciais, provindos da Psicologia da Justiça, sobre a
caracterização dos agressores e dos ofendidos, sobre factores de risco, sobre
formas de coping, enfim, uma panóplia
de informação sem a qual não podem correctamente desempenhar as suas funções.
Relembro, por fim, que a figura dos consultores está há muito prevista no
Código de Processo Penal e que deveria ser mais usada pelos magistrados. A
aplicação da Justiça é cada vez mais complexa e o concurso de uma
multiplicidade de saberes só pode enriquecer o que todos pretendemos: uma
sociedade mais justa, igualitária, sem estereótipos e sem juízos morais, éticos
ou religiosos, constitucionalmente vedados.
"Indecência bíblica" é uma expressão apolínea, certo?
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