Calhou passear os meus cães à mesma hora que a K. batia à porta da J., que não estava: tinha ido a Austin visitar a filha e, entretanto, eu tinha ficado encarregada de apanhar o jornal e o correio. Forneci a informação e, perante a pena da K., prestes a partir para o Japão para ir assistir a umas workshops de manufactura artesanal de papel, comprometi-me a informar a J. do desencontro e cheguei mesmo a enviar uma mensagem pelo Facebook à K. a dizer que a mensagem tinha sido entregue. Pode-se dizer que levo a sério as minhas actividades de pomba-correio. Depois disso encontrei a K. ocasionalmente nos mais de dois anos que passaram. Não sei se, fora do contexto dos amigos comuns, seríamos capazes de nos reconhecer.
Sou um bocado má com nomes, especialmente se não tenho nenhuma ligação emotiva à pessoa, quer dizer, é mais fácil lembrar-me do nome de amigos, do que do nome de conhecidos e nomes que leio nos jornais e assim são terríveis para mim. No entanto, conheço muita gente, talvez mais do que é normal e, especialmente, mais do que seria esperado de mim. Acho sempre interessante quando encontro amigos antigos e começamos a conversar das amizades comuns de outrora, sei mais ou menos onde essas pessoas estão, o que surpreende a pessoa com quem converso. Não julgo que isto seja uma questão de coscuvilhice da minha parte, mas sim de interesse. Como me interesso pelas pessoas, mantenho o contacto. Pode ser esporádico, mas mal ou bem, lá vou mantendo. Por acaso, a K. tem um último nome estranho, que, apesar de curto, necessita que se enrole a língua e é engraçado dizê-lo, logo consegui lembrar-me dela. Depois, frequentemente ouço histórias em que ela aparece, porque a J. era bastante amiga da mãe da K., o que reaviva a minha memória.
Durante a tempestade Harvey, a casa da K. ficou inundada. Não foi muito mau, talvez 20 cm de água, logo não perdeu nada até porque, por acaso, se tinha acautelado. Como mora na casa antiga dos pais, passou os últimos anos a dar a volta ao recheio da casa; no processo, guardou muitas coisas em caixas grandes de plástico -- evitou usar cartão porque achou que, em Houston, com a humidade, não funciona muito bem e depois também achava que a possibilidade de uma inundação era real. Antes da tempestade, tirou o que podia do chão. Pensou bem e por isso a maior parte dos estragos estavam circunscritos à estrutura da casa: as paredes precisavam de ser parcialmente substituídas e o chão de madeira teve de ser arejado para ver se voltava ao lugar e não tinha sido danificado.
Mesmo assim, deu uma trabalheira esvaziar a casa, meter as coisas num armazém, ligar ventoinhas e desumificadores, retirar parte das paredes para a estrutura interna da casa arejar, etc. Havia pó, a electricidade estava desligada até se saber se tudo estava bem, e a casa deixara de ser um sítio confortável onde se viver. Lembro-me de uma das primeiras coisas que a ouvi dizer, pouco depois de a conhecer, foi exactamente acerca da casa dela: "It's an old house, but it's a good house." Achei um comentário tão engraçado que me ficou na memória. Nos primeiros dois ou três dias, ficou em casa da J., mas a J. já tem mais de 90 anos e cansa-se muito depressa quando tem visitas. Depois, por umas três semanas, ficou em casa de uma vizinha que, por acaso, estava de férias, mas a pessoa tinha gatos e, outro acaso, a K. é alérgica a gatos e já andava um bocado chateada porque estava a ficar bastante afectada. Decidiu escapar um fim-de-semana para Austin, sem saber onde ficaria na semana a seguir.
Por esta altura, quem também andava um bocado sem saber era eu. Estava prestes a partir para Portugal, mas não sabia o que fazer às plantas. A minha casa tem uma luz estranha e as minhas plantas são um bocado esquisitas, aliás, ainda não conheci um feto, um cacto, uma suculenta, ou uma tillandsia, tudo plantas resistentes, que eu não conseguisse matar com bastante sucesso. Tenho é de deixar de comprar plantas porque estas minhas tendências assassinas causam-me stress. Começo a pensar nos milhões de anos de evolução que estão à minha frente e que estou prestes a destruir e fico deprimida. E, não, ainda não dei em vegetariana porque isso, obviamente, não resolveria o problema. O melhor é não pensar muito nessas coisas.
Mas é impossível deixar de pensar e, um dia em que o meu vizinho me apanhou na rua e começou a conversar, sabe-se lá por que carga de água, pois eu até sou bastante calada quando me encontram na rua -- falava da tempestade, ele sabia que a nossa rua não ia inundar e falava de modo triunfante porque as suas previsões estavam completamente certas --, pensei numa possível solução. Virei-me para a esposa e disse-lhe que, se calhar, tinha de contratar o filho para me recolher o correio e regar as plantas enquanto eu ia de férias. Não era uma solução perfeita. O miúdo deve ter à volta de 15 anos e deve perceber tanto de plantas como eu percebo de luta livre americana e depois quanto é que eu lhe iria pagar, não faço ideia quanto recebem os jovens. Consumiam-me estas dúvidas, mas também pensava que, se ele matasse as plantas, não fazia muito mais do que eu e outras pessoas fizeram: por exemplo, a minha empregada costuma afogá-las, regando-as copiosamente. Se calhar, até devia conseguir fazê-lo mais eficientemente, porque morava do outro lado da rua, daí a necessidade de o remunerar por me "desamparar a loja" e me aproximar do ideal minimalista.
Por falar em desamparar a loja, imaginem que, em Julho, uma rapariga inglesa deixou umas plantas comigo no escritório, enquanto ia a Inglaterra fazer o visto para ela e para a família. Pelo sim, pelo não, dei-lhe o meu cartão com o meu contacto e disse-lhe que, se precisasse de alguma coisa, para me contactar. Nunca mais a vi, nem me disse nada. Lá fiquei eu com mais duas plantas para cuidar ou matar -- é escolha múltipla, mas só com duas opções. Depois de muito indagar, descobri que a empresa para a qual trabalhava tinha mudado de planos e já não ia ter um gabinete em Houston. Bem me parecia estranho que fosse preciso uma empresa inglesa para arranjar empregados para empresas de construção civil. Será que não há ninguém nos EUA que saiba fazer isso? Ainda por cima o CEO, que eu também cheguei a conhecer, era um "jerk", que não tinha as chamadas "social skills". Estranho, mas, por acaso, eu penso demais...
Eis que no tal fim-de-semana em que não se sabia o que fazer, a J. me apresenta um enredo ficcional, que tinha apresentado à Groupie do Lobo Antunes. Perguntou à GLA o que ela acharia de me perguntar se a K. poderia ficar em minha casa enquanto eu ia a Portugal. A GLA achou uma péssima ideia, agora estar a incomodar a Rita, não fazia sentido, coitada de mim. O conselho tinha ainda a autoridade rabínica da GLA porque ela é judia e sempre que a J., que não é judia, precisava de conselhos do foro judaico, pedia orientação à GLA. Qual quê? Achei uma excelente ideia, nem deixei o cenário ser completamente apresentado, e a J. sentiu a consciência mais leve, pois custava-lhe não oferecer a sua casa à K., sentia-se egoísta, mas não tinha vigor para aguentar uma hóspede de longo prazo. Ficou de telefonar à K., propor-lhe a ideia, e dar-lhe o meu número.
Na Segunda-feira de manhã, telefonei à J. para saber do status da nossa negociata, mas ainda não tinha havido progresso. No final da manhã, telefonou a K. para confirmar a oferta e combinar vir a minha casa para lhe dar a visita guiada. Ao chegar a minha casa, a K. vinha cheia de nódoas negras e dores no corpo: tinha caído enquanto tentava arrumar a casa, mas lá combinámos tudo. Dei-lhe instruções de como a casa funciona e disse-lhe que podia usar as minhas máquinas de lavar roupa e secar. Que alívio para mim, de um momento para o outro as peças do puzzle encaixaram e agradou-me que a casa não estivesse sem actividade enquanto estava fora. Ainda por cima, uma senhora que percebia de plantas -- era como se me tivesse saído a sorte grande.
Quando saio de casa, gosto de deixar tudo arrumado: as camas feitas de lavado, a tralha organizada, a casa limpa, a louça e a roupa toda lavada e arrumada. É uma pequena mania minha, mas sinto-me melhor quando chego a casa e está tudo no sítio. E depois, quando estamos cansados, como quando regressamos de viagem, sabe muito melhor dormir numa cama com lençóis lavados. Se a minha mãe me visse agora gozava comigo. Uma vez, quando vivia na casa dos meus pais, passei vários dias sem fazer a cama porque dormia na parte de cima de um beliche e como a minha mãe era baixa, não topou que eu não fazia a cama. Quando ela descobriu proibiu-me de deixar a cama assim e perguntou-me se eu não tinha vergonha.
Vergonha não era bem o que eu tinha, era mais preguiça porque eu cheguei a convencê-la a deixar-me dormir num saco de cama só para não ter de lidar com lençóis, cobertores, etc. E agora mudo os lençóis da cama todas as semanas; mudo não é bem o termo, faço a cama de lavado porque com secadora dá para ter tudo pronto em menos de três horas (eu tenho a mania de lavar lençóis no ciclo longo, com água quente), logo pode-se usar sempre os mesmos; as toalhas de banho a mesma coisa. Conto isto porque não é comum as pessoas fazerem a cama de lavado todas as semanas. Há quem deixe passar meses...
Três semanas depois, quando regressei, a casa estava quase como quando tinha saído; mas a cama da minha hóspede não estava feita e algumas plantas tinham morrido-- as sobreviventes preferem claramente morrer comigo, não as posso censurar. Infelizmente, no dia em que caiu, a K. partiu o cotovelo e teve de ser operada para lhe meterem parafusos no braço e gesso, logo ficou limitada no que podia fazer cá em casa. Foi muito simpática a minha segunda refugiada do Harvey e deixou-me uma nota a agradecer e a dar-me as boas-vindas. Reguei as plantas e, felizmente, o meu limoeiro ainda estava vivo -- por acaso, é um limoeiro Lisboa e era importante para mim que sobrevivesse.
A K. gostou muito das minhas máquinas de lavar e secar. Ela não tem na casa dela porque é uma casa antiga e pequena, dos anos 40. Gostou tanto que andou a contar às amigas as maravilhas da minha maquinaria. Disse-lhe que, se quisesse, podia continuar a vir lavar a roupa a minha casa e, agora, quando vem, preparo-lhe chá e ficamos na cavaqueira enquanto a roupa se lava e seca. Ela acha piada às bolas de lã que tenho na secadora para controlar a (energia?) estática porque o normal é comprar folhas anti-estática, mas eu estou farta de comprar coisas que produzem lixo e decidi usar bolas de lã porque são melhores para o ambiente e tenho de fazer menos compras.
No Domingo, telefonou a perguntar se eu não queria ir a um concerto de música sagrada na Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, nem sei se se diz assim em português. Eu e a igreja não somos grandes amigas; aliás quando me perguntam a religião eu respondo sempre "I was raised Catholic", que é como quem diz "Não me chateiem que eu já estou comprometida". E isto de dizer "católica" nesta parte da América dá muito jeito porque os cristãos aqui do burgo não gostam dos católicos, nem sequer os acham cristãos. Bem sei que não faz sentido, mas é exactamente esse o meu ponto: estas coisas não fazem sentido, são coisas de fé. Hesitei um bocado, mas a K. disse que se nos tentassem converter, sairíamos imediatamente.
À noite veio buscar-me e, durante a viagem de carro, por acaso telefonou uma amiga minha portuguesa. Não é comum falar ao telefone quando estou acompanhada, mas, na semana passada, a filha da minha amiga tinha estado doente e achei por bem atender. Conversámos em português durante alguns minutos e depois despedi-me para não parecer mal. Assim que desliguei, a K. disse-me o quanto tinha gostado da conversa, da qual não tinha percebido nada. Achava o português tão lindo e tão diferente das outras línguas românicas -- ela fala francês e julgo que algum espanhol, mas o português soava-lhe diferente e tão delicado. Achei engraçada a observação...
Quando chegámos ao templo, achei um bocado deprimente. Faltam os santos e as decorações das igrejas católicas -- falta a arte! E depois achei a congregação estranha: muita gente jovem, rapazes e raparigas, alguns homens de mais idade, e quase nenhumas mulheres mais velhas. Não faço ideia o que esta igreja faz às mulheres maduras. Ah, mas não vos expliquei porque estávamos lá! É que dois dos jovens eram os missionários que tinham ajudado a K. com os danos da tempestade. Andavam a fazer voluntariado na rua dela e ofereceram-se para a ajudar a mudar alguma mobília para o armazém e trabalhar nas pareces. No início houve algumas questões de logística porque os missionários têm de estar sempre acompanhados, isto é, um não pode estar sozinho com as pessoas que está a ajudar; onde está um, tem de estar outro. Não sabemos se é por questões de segurança ou de reputação.
Conheci os dois rapazes que a ajudaram -- os elders --, mas não falei muito com eles; é estranho chamar-lhes "elders", quando poderiam ser meus filhos. Não tenho grande coisa para falar nestas circunstâncias, mas ao escutar a conversa com um, fiquei surpreendida. A K. perguntou-lhe dos planos e ele disse que queria ser ortodentista -- já quer ser desde pequenino -- e, quando terminar o voluntariado, vai para o Utah estudar numa universidade e, depois de terminar o curso, vai-se casar. A maneira como ele explicou a coisa levou-me a crer que, se calhar, ainda nem namora. Fiquei em pulgas de perguntar, mas contive a curiosidade. Depois pensei que esta certeza toda me recordava do que eu sentia quando via os meus girinos a nadar: os meus futuros sapos nadavam como se já tivessem o futuro todo planeado e soubessem exactamente o que iriam ser. Por acaso, nunca me senti assim...
ResponderEliminar... com destreza e nenhumas dúvidas, calculo eu.
Pois... ;-)
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