Até há umas semanas nunca tinha ouvido falar em Dulce Maria Cardoso. Mas o Pai Natal foi generoso e ofereceu-me o último romance da escritora: “Eliete”. Eliete tem 42 anos, o corpo exibe os primeiros sinais de decadência, é casada com o Jorge, um informático, tem duas filhas, é agente imobiliária, tem carro e casa, vive em Cascais. Na final do Europeu de 2006, no meio da alegria geral, descobre a sua solidão. Quase automaticamente, inscreve-se com um perfil falso no Tinder - apesar da pesada “máquina da traição” ter sido accionada antes, provavelmente quando começou a fantasiar com outros homens, confessa Eliete. O Tinder não lhe traz a felicidade, e Eliete mantém o casamento de mais de 20 anos. Eliete é uma mulher mediana. Não se distingue pela beleza, nem pela inteligência. Não tem sonhos, nem ambições – uma das suas poucas ambições de adolescência era deixar de usar óculos.
”Eliete” não é apenas a confissão de uma espécie de Madame Bovary de Cascais. É também o retrato desencantado de um país, que ainda não se libertou da herança e do fantasma de Salazar. Um Portugal dos pequeninos. Um Portugal onde continuam a existir “os herdeiros, os incultos e gananciosos governantes e o inculto e submisso povo”. Um Portugal onde a Guidinha com cinco negativas no segundo período do 9.º ano é mudada pelos pais para um colégio privado e as notas disparam. A Guidinha nunca teve jeito para línguas, mas sabia falar a única língua que interessava: a língua dos meninos e das meninas da Linha, com a afectação que punha nas palavras, “os gritinhos e a aniquilação de parte das sílabas”. O domínio desta língua até a dispensava de utilizar os pergaminhos de família para arranjar “um dos bons empregos da CEE”. Anos depois, a Guidinha estaria, de facto, a trabalhar no Parlamento Europeu.
“Eliete” é um dos livros do ano.