Gostaria de acrescentar umas coisas à discussão sobre aquela peça da Joana Bento Rodrigues. Encontrei a peça através de um amigo meu que a partilhou no Facebook e fiquei um bocado chateada com o comentário de alguém que eu não conhecia, que perguntava como é que o Observador publicava uma coisa daquelas. Só por ter lido aquilo apeteceu-me logo ser a favor da Joana porque argumentar a favor da censura é um primeiro sinal de que a coisa é mais complexa do que parece. Depois, vi que havia muita gente contra, ou seja, a JBR tornou-se no underdog aí do sítio e eu, como boa americana que sou, tenho de torcer pelo underdog.
Fui ler o original para poder avaliar em primeira mão e não achei nada de extraordinário, nem sequer me ofendeu. Notem que eu sou a antítese do que a Joana Bento Rodrigues defende: sou divorciada, não tenho filhos, nem nunca engravidei, tenho uma boa carreira profissional, e não penso que me tivesse realizado se tivesse sido apenas mãe e esposa, aliás sempre orientei a minha vida no sentido contrário com a clara intenção de não ter filhos. Lembro-me de algumas vezes ter imaginado estar grávida e ter sentido alguma repulsa.
A primeira impressão da leitura que fiz é que a argumentação é pobre, mas a maior parte das teses que ela apresenta são verdadeiras. No todo, a peça está mal escrita e recorre muito a estereótipos; no entanto, a sua grande virtude é dár-nos a oportunidade de iniciar um diálogo e discutir o assunto partindo do ponto de vista de uma mulher que valoriza bastante o seu papel como mãe e esposa.
Tal como a Joana Bento Rodrigues também geri a minha vida dividindo-a em três áreas. Ela chama-lhe o pontencial feminino, matrimonial, e maternal; eu chamava profissão, família, e casamento. O meu objectivo era que, em qualquer altura, pelo menos duas das três áreas estivessem bem, sem grandes problemas. Mais tarde relaxei o critério e achei que a minha vida estava minimamente bem, se uma das áreas estivesse bem, e as outras precisassem de alguma atenção. Para mim, falhar, seria falhar a todas ao mesmo tempo. Como devem imaginar, acho que a ideia de que não se pode ter tudo é essencialmente correcta. Em cada altura, temos de dar prioridade a alguma coisa, mas o importante é termos noção de que temos de fazer sacrifícios -- os custos de oportunidade dos economistas.
No potencial feminino, a JBR inclui muitas coisas relacionadas com a aparência física e cuidados do lar, mas isso é verdade para quase toda a gente e, se é verdade para quase toda a gente, também é verdade para as mulheres. A maior parte das pessoas prefere uma boa aparência física e um sítio agradável para viver, senão as lojas de roupa e decoração não seriam tão ubíquas. Mas note-se que muitos decoradores de renome são homens: Thom Filicia, Philippe Starck, Nate Berkus, Albert Hadley... (A minha preferência vai mesmo para uma mulher, a Kelly Wearstler). E não nos podemos esquecer de homens noutras áreas como Kevyn Aucoin, um dos maiores maquilhadores de sempre, ou estilistas, outra área dominada por homens. A sensibilidade estética não está limitada às mulheres e há muitos homens que se realizam em áreas que a envolvem.
O potencial matrimonial se definido como sendo a ideia de tentar encontrar o melhor parceiro para nós faz sentido, agora achar que se define como procura de segurança é pateta, até porque há bastantes homens que criam insegurança ou são inseguros. Nesta altura do campeonato, a JBR meteu seguro contra riscos na argumentação ao afirmar que os papeis poderiam ser invertidos, caso as oportunidades dos membros do casal não fossem iguais e tal seria perfeitamente natural. Aqui tive alguma dúvida acerca da convicção da autora, mas é plausível dado que ela é médica e tem uma carreira profissional. Para se ter sucesso em qualquer coisa, é preciso gostar-se dela e isto é também verdade para a nossa actividade profissional. Se não temos a inclinação emocional, dificilmente nos sacrificamos para progredir numa área e é necessário algum sacrifício e teimosia no início.
Nas relações a dois, as coisas são muito mais complicadas, pois há várias dimensões a considerar. Acho que foi o Alain de Botton ou talvez Esther Perel que disse que antigamente as pessoas casavam-se por interesse e depois procuravam amor fora do casamento. Hoje em dia, espera-se tudo de uma mesma pessoa e é bastante difícil conjugar tudo, especialmente a longo prazo. Não nos podemos esquecer que o que sentimos por alguém pode não ser eterno, pois ambos crescemos e podemos divergir a longo prazo o que condena a relação. É preciso haver algum trabalho de convergência por parte de ambos para uma relação durar. Cerca de 50% dos casamentos termina e muitos divórcios são iniciados por mulheres, logo é óbvio que nem todas se sentem realizadas no casamento.
Já o potencial maternal é biológico -- convenhamos que tudo o que nos diz respeito é biológico -- e diz JBR que é encantador ver mães e filhos, etc. Ora, é óbvio que as mães que têm mais cuidados com os filhos dão a estes maior probabilidade de sobreviver e passar essa predisposição às gerações futuras. E também é óbvio que quando uma mulher engravida e tem um filho, criam-se laços afectivos entre mãe e bebé e que servem para aumentar a probabilidade da criança sobreviver. Aliás, os bebés humanos são umas criaturas muito indefesas e que se desenvolvem bastante lentamente comparado com outras espécies. Dependem também muito do corpo da mãe, que lhes dá comida, anticorpos para evitar doenças, etc., mas o avanço tecnológico já nos está a libertar de alguns destes condicionantes.
Um bebé humano com mãe tem mais vantagens do que um apenas com pai, mas tal depende bastante do sítio onde vive. Ter mãe também não é suficiente, é preciso que esta preste certos cuidados à criança. Mesmo o acto de dar à luz faz diferença, pois, por exemplo, é pelo parto natural que o bebé recebe a microbiota que irá popular o sistema gastro-intestinal. E quem não se recorda do falhanço que foi quando a Nestlé incentivou as mães em países do chamado Terceiro Mundo a alimentar os filhos com leite em pó, pois a qualidade da água era tão má que as crianças ficaram doentes -- era o corpo da mãe que servia de filtro de patogenes e o leite materno era mais rico em nutrientes e anticorpos e, ao eliminar esse papel da mãe, criaram doença nos filhos.
Gostaria também de falar sobre o desejo de ser mãe e vou usar o meu caso pessoal. Como afirmei acima, não sinto falta desse papel, no entanto, houve uma altura em que quis engravidar e coincidiu com o declíneo acelerado da minha fertilidade. O pico de fertilidade de uma mulher acontece em média por volta dos 24 anos. A partir dos 30, a fertilidade começa a diminuir mais rapidamente. Quando chega aos 40, 90% dos óvulos da mulher têm anormalidades nos cromossomas, é mais difícil para o óvulo implanta-se no útero, etc. As mulheres falam no relógio biológico e foi por volta dos 39-40 anos que o meu corpo me deu sinal que precisava de engravidar. É óbvio que já era um bocado tarde, mas senti uma clara separação entre o que eu achava (não queria filhos) e o que o meu corpo queria (um filho). Esta foi a minha experiência e não vou presumir, como JBR fez, que as outras mulheres sentem o mesmo que eu ou até que tenham o mesmo ritmo, mas quando li a peça da JBR pensei se aquilo era ela a falar ou o relógio biológico.
Se chegaram até aqui, espero que compreendam o meu argumento: as conclusões dela são perfeitamente defensáveis, desde que não generalizadas; os argumentos que usou demonstram que pouco ou nada reflecte sobre o assunto. Falta-lhe capacidade de persuasão. Quando ensinei numa universidade americana, estive envolvida no processo de acreditação externa do programa de economia. Parte do processo era definir as métricas com que definiamos o sucesso do programa, isto é, o que era esperado dos alunos depois de passarem pelas nossas mãos. Uma das métricas era mesmo essa: capacidade de argumentar persuasivamente. Ao ler o texto da JBR, achei que lhe faltava essa qualidade.
Como disse acima, continuo a defender que as coisas que a JBR disse eram um bom ponto de partida para se ter uma conversa em que se discutisse políticas públicas que permitam à mulheres ser mães, parceiras, e profissionais. Algumas dessas políticas são na área do mercado de trabalho, mas também é importante discutir a política de saúde porque, para além das questões de fertilidade, muitas mulheres sofrem de depressão pós-parto, por exemplo. Será que há bom acesso a cuidados de saúde em todas as partes do país? Será que, com a baixa natalidade, não seria bom pensar em tentar chegar a mais mulheres para as acompanhar durante o período fértil e ir tendo esse diálogo a longo prazo?
Também devemos considerar as políticas de educação porque muitas pessoas não sabem como o corpo humano funciona. Tenho um amigo americano que conheço há mais de 20 anos, que gosta muito de sexo e tinha muito sexo, mas teve bastante dificuldade em engravidar com a esposa. Disse-me ele uma vez, depois de vários meses em tratamentos de fertilidade, que apesar de ser tão obcecado por sexo, nunca tinha tido noção do quão difícil era engravidar.
Uma nota final: é estranho que Portugal dê prioridade a contactar contribuintes para maximizar a recolha de impostos, ao mesmo tempo que ignora o bem-estar de quem lhes proporciona futuros contribuintes.
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