Ao contrário de muita gente, não tenho problemas com telemóveis no quarto. Não me incomoda nada passar uns minutos a ver fotos no Instagram antes de dormir, até porque me relaxa imenso. Não é, portanto, surpreendente que o meu despertador seja o meu telemóvel. O único problema com isto são as notificações que se vê assim que acordamos. Por exemplo, na Quarta-feira acordei às 6 da manhã como habitual, vou a desligar o despertador e vejo que, no NextoDoor há uma vizinha que se diz estar meio-abananada porque ouviu tiros durante a noite, mais propriamente às 2:30 da manhã, será que mais alguém tinha ouvido...
Não ouvi nada, mas uma outra vizinha ouviu e a troca de impressões já tinha começado. Uma disse que tinha visto dois corpos e a polícia por todo o lado e que a notícia já estava no Twitter, mas fui procurar e a polícia não tinha dito nada. Foi uma TV que deu a notícia porque entretanto recebo um SMS de um colega que diz que ficou doente e não podia ir trabalhar, quando lhe contei do tiroteio, disse-me que tinha visto na TV, fui ver o canal de TV no Twitter e lá estava.
Consultei o mapa porque pela descrição da vizinha, o local onde a coisa se tinha passado parecia-me bastante próximo, aliás fiquei com a impressão de que era ao pé do parque que tem o chão coberto de musgo--é uma coisa simplesmente divina. Tirei umas fotos de nuvens lá perto dois dias antes do tiroteio. Recordo-me também que algumas semanas depois de me mudar para esta vizinhança, houve um miúdo de bicicleta que me seguiu por essa zona. Na altura fiquei incomodada, mas agora o que me incomodava era pensar que, se calhar, a criança tinha uma tragédia à porta.
Mandei calar a minha imaginação porque, às Quartas-feiras, temos reunião de risco no trabalho, que começa às 8 em ponto, e como o colega não podia ir, quem tinha de fazer os preparativos era eu. Durante o dia fui consultando o NextDoor para ver se havia novidades, mas passadas algumas horas houve outro tiroteio, que não foi bem tiroteio. Um homem suicidou-se a tiro num parque, o parque que eu tinha visitado pela primeira vez há umas duas semanas. É um local tão agradável, com um trilho curto, mas rodeado de árvoredo denso, um riacho que serpenteia pela floresta, um parque de merendas com baloiços para as crianças. No fim de semana passado, como estava frio, andei a investigar se este parque seria um bom sítio onde tentar encontrar cogumelos morel porque encontrei lá vários sítios com mandrágora americana (mayapple) e os cogumelos crescem em circunstâncias semelhantes.
No NextDoor, uma senhora que passeia cães ficou indignada que se fosse andar ao tiros num sítio com miúdos, especialmente com uma escola primária ao pé, mas um outro vizinho que conhecia a vítima pedia compreensão e recato. A vítima era um amigo dele, um homem que andava atormentado, e que deixava orfã uma criança ainda pequena. Tentei pensar nesse homem; no mundo perfeito da minha imaginação ele teria encontrado algum consolo na beleza daquele parque, ter-se-ia acalmado e retornado a casa para encarar mais um dia, sem que nada de mal lhe tivesse acontecido. Entristece-me que o parque não tivesse tido esse efeito nele.
Continuei a minha rotina, que inclui ouvir os podcasts portugueses para não me esquecer de como falar português. No Governo Sombra tinham um clip da ida do Joe Berardo à Comissão Parlamentar de Inquérito, o tópico mais importante do momento em Portugal. Nunca tinha ouvido o Berardo a falar e surpreendeu-me um bocado a falta de desenvoltura verbal, mas o que me chocou mesmo foram as perguntas que os deputados lhe fizeram porque demonstram ignorância e falta de preparação. Será que os deputados conhecem a lei portuguesa? Não parece que saibam que as empresas em Portugal gozam de um enquadramento legal que limita a responsabilidade dos proprietários/sócios. Como é que questionam o homem sem perceber os detalhes do empréstimo e a lei que o rege? Ainda por cima, esperam que o Berardo lhes explique e se auto-incrimine.
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