domingo, 12 de outubro de 2025

É a economia agrária, estúpido!

Estamos na segunda semana do apagão do governo americano. Só para referência, o último durou 35 dias e também ocorreu com o Trump--em Dezembro de 2018 e Janeiro de 2019. Como nem só de apagões vive a malta, na Sexta-feira, Trump anunciou que ia cobrar tarifas à China--outra vez! A justificação foi a China ter imposto mais restrições à exportação de minerais raros, que são necessários para a manufactura de processadores de computadores, baterias, etc.

Com o apagão governamental, os americanos deixaram de ter acesso a muitos dos serviços que o governo oferece, especialmente em gestão de risco. A maior parte das entidades governamentais deixou de publicar dados da economia americana e também não estão a recolher todos os dados do costume, logo vai ser difícil ter ideia de como as coisas estão na realidade, mas mesmo que os dados estivessem a ser recolhidos, toda a análise está calibrada para um funcionamento da economia que já não existe porque Trump destruiu parte dos estabilizadores automáticos da economia. O exemplo mais flagrante é o da agricultura.

Os EUA são um dos principais produtores de commodities do mundo (em agricultura, que é a área que conheço melhor, produzem carne de frango, porco, e vaca, trigo, milho, soja, óleo de soja, farelo de soja, arroz, algodão, etc.), mas recentemente foram ultrapassados pelo Brasil em bastantes áreas. A China é o maior importador de commodities do mundo e o maior comprador de commodities americanas, menos este ano porque o Trump impôs-lhes tarifas outra vez e a China deixou de comprar. A primeira vez foi em 2018, o que fez com que os preços das commodities afundasse, mas esse episódio foi interrompido pela pandemia e Trump conseguiu negociar um acordo com a China que requeria que a China comprasse um certo montante de commodities agrícolas, o que fez com que os preços recuperassem. Nessa altura, a China não tinha grande opção por causa da pandemia, mas também porque quando o resto do mundo estava em lockdown, a China estava aberta, logo necessitava de matéria prima para abastecer o resto do mundo (caso do algodão).

Apesar de Biden continuar a mesma política comercial com a China, o acordo comercial de Trump tinha um prazo limitado e expirou sem que outro fosse negociado. Então a ideia de Trump neste segundo mandato era que ao "implicar" com a China, iria acontecer o mesmo que no primeiro e a China iria capitular e acabar por comprar as commodities americanas. Só que nos últimos cinco anos, a China aproximou-se a América do Sul, especialmente do Brasil, e também reactivou relações comerciais com a Austrália, que também produz algumas commodities, e com isto os EUA perderam algum poder de negociação, logo desde Abril deste ano, os preços das commodities têm estado em queda. Por sua vez o Brasil continuou a aumentar a sua produção de commodities e o custo de produção do Brasil é inferior ao dos EUA, logo o Brasil tem margem para fazer face a descidas de preço.

Quando os preços ficam muito baixos, os agricultores americanos têm a opção de emprestar o produto ao governo federal em troca de financiamento e quando os preços recuperam, os agricultores saldam o empréstimo e vendem o produto a preços de mercado que já estão mais favoráveis. A existência destes empréstimos faz com que os preços das commodities dificilmente desçam abaixo do pagamentos do empréstimo. Acontece que o governo federal está fechado (por coincidêcia, até estamos na altura em que os produtores começam a colher o produto), logo não dá para emprestar ao governo, o que faz pressão nos preços e limita o acesso dos agricultores a capital para fazer face às suas despesas.

A China pode esperar porque as colheitas australiana, brasileira e argentina surgem no mercado antes da americana, já os agricultores americanos não e as falências já começaram. Também já começaram os telefonemas ao membros do Congresso a reclamar e Trump já disse que vai haver um pacote de apoio aos agricultores, mas não tão generoso como o do primeiro mandato. Claro que, no primeiro mandato, Trump não despediu os empregados do governo federal como está a fazer agora. Mesmo que ele queira dar dinheiro aos agricultores, é provável que quando chegar altura de fazer os pagamentos não tenha ninguém para os processar.

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Nove meses

Entrámos no décimo mês do ano e para mim tem sido meio-montanha russa. O ano começou com o AVC do meu pai e a minha visita de urgência a Portugal. Isto significou que perdi a minha primeira aula para a certificação de Master Gardener e achei que a probabilidade de conseguir terminar o curso era quase nula porque se faltássemos a mais de duas aulas reprovávamos. Então em Março quando tive de ir ao Brasil em trabalho quase que tive de faltar a mais outra aula, mas regressei a um Sábado de manhã e fui directamente do aeroporto para a aula, que era uma visita guiada do Jardim Botânico. Consegui então terminar as aulas semanais perdendo apenas uma.

Depois em Abril tivemos o exame que foi outra fonte de stress, mas correu bem. Faltava depois terminar as horas de voluntariado: 20 horas de serviço comunitário, mais 20 de voluntariado para o serviço de Extensão da Universidade do Tennessee, e depois mais 8 horas de educação continuada (palestras, seminários, aulas online), que tinham de ser terminadas antes do início de Agosto para podermos participar na cerimónia de graduação a 21 de Agosto. Ainda dei mais um pulo a Portugal em Junho/Julho para ver o meu pai e ir a um casamento.

Consegui completar todos os requisitos e terminar a certificação de jardinagem, mesmo a tempo de ir ao Texas em visita de trabalho para avaliar a colheita de algodão. Cheguei ao hotel, fiz o check-in, e fui dar uma volta a pé para andar 10,000 passos. Estava quase a regressar ao hotel quando vejo que a minha irmã tinha enviado várias mensagens. O meu pai tinha acabado de falecer. "Quando vens?" perguntou ela, "Não vou" respondi.

Não queria ir ao funeral, não valia a pena, tudo o que podia fazer pelo meu pai estava feito, e tanto eu como ele não gostamos de funerais. Depois a logística do regresso ia ser um pesadelo: tinha de regressar a Memphis para pegar o passaporte e poder sair do país, depois arranjar um voo de emergência para ir a Portugal, fazer as malas, e passar uns três dias a andar às voltas com viagens não era o que eu queria fazer naquela altura. Para além disso, quando o vi em Junho sabia que era a última vez que estava com ele. E quando falei com ele alguns dias antes de ele morrer, pedi-lhe para ele morrer. Já não podíamos fazer nada por ele, o corpo estava demasiado gasto e ele não estava numa situação confortável. Disse-lhe que estavamos bem, que ele não precisava de se preocupar connosco, mas que estávamos preocupados com ele porque sabíamos que estava a sofrer.

Apesar do alívio que senti ao receber a notícia, era-me difícil pensar nele e não chorar, e não disse a quase ninguém. Passei três dias a medir o algodão com um colega que não sabia do que se passava comigo; no carro, de vez em quando começava a chorar, mas não o suficiente que ele se apercebesse. No último dia, perguntou-me se eu queria ir jantar. Não queria, tinha de terminar de preparar o relatório da visita para a reunião do dia seguinte. Apresentei os resultados e desculpei-me porque tinha de sair para ir para o aeroporto. Depois à noite, peguei o meu sobrinho no aeroporto que vinha passar quase três semanas comigo e finalmente disse no trabalho o que tinha acontecido. Deram-me três dias de folga e fomos a Nova Orleães, que é um sítio em que a fronteira entre a vida e a morte é bem esbatida--e tem boa comida.

Concumitantemente, o reino de terror do Trump adensa-se. Para além da incerteza que ele criou em termos de funcionamento da economia com as tarifas que são, mas não são, o governo federal deixou de cumprir leis e faz o que lhe dá na telha. Daqui a uns dias, irá haver um intervenção militar em Memphis, supostamente para reduzir o crime, mas é óbvio que é uma desculpa para caçar pessoas que eles não gostam e as meter na prisão. Mesmo cidadões americanos têm sido presos por engano, mas nem sei, e tirando as aventuras com o meu sobrinho e as viagens de trabalho, tenho passado bastante tempo em casa. Quando saio à rua levo o meu passaporte americano.

No trabalho esta semana, dizia aos meus colegas que receava ser presa, e eles acham que estou a exagerar. Só pessoas más estão a ser presas, asseguravam. Por enquanto, a maioria das pessoas presas são imigrantes ilegais ou pessoas que eles não querem que fiquem nos EUA, mas ainda a procissão vai no adro. Conheço algumas pessoas que estão ilegalmente nos EUA, e um deles foi preso. Tive alguma esperança que com o tempo fosse libertado, mas depois de ouvir um dos episódios mais recentes do This American Life, acho que o mais provável é a pessoa morrer na prisão porque é diabético e não lhe estão a dar comida adequada, nem medicamentos, ou deportarem-no. Se tivermos sorte, vai para o país de origem, senão, ainda acaba num país africano dos mais pobres.

É difícil acreditar que isto é a realidade porque há uma certa aura de normalidade nos dias: o sol brilha, os vizinhos cumprimentam-se, o pássaros cantam. Por coincidência, em 1995 ou 1996, li um livro de Arthur Miller chamado Focus, que é sobre um homem que não é judeu, mas acha que se parece judeu e então tem imenso medo de ser identificado como judeu. É adequado para os tempos que correm na América. A Heather Cox Richardson, uma historiadora americana, diz que as circunstâncias actuais não são únicas na história e que os EUA já ultrapassaram crises semelhantes antes e penso que sim, esta loucura irá ser ultrapassada.

Num discurso recente, o primeiro ministro do Canadá, Mark Carney, citou Leonard Cohen na canção Anthem: "There is a crack, a crack in everything | That's how the light gets in". E há alguns raios de luz, como o episódio do Kimmel; os americanos têm poder de compra e houve um número suficiente que cancelou a subscrição dos canais da Disney para a companhia voltar a trás. Estou convenciada que o desmoronamento desta loucura vai ser despoletado por motivos económicos. Quando começa a doer no bolso, os americanos entram nos eixos.