Tarde soalhenta da Senhora da Boa Nova. Em
Sua Igreja preguei, ontem à noite, o sermão que me faltava para ser um não
crente ungido do Senhor. Sobraram-me palavras e gestos de pão consagrado. Trouxe-os
comigo e multipliquei-os em tua memória… Estendi-os no fio, a secar, e
observo-os agora daqui, de frente para o Canal: Pressinto-os humedecidos do sol
que se não cansa de aquecer esta saborosa solidão. Sabes, meu amor, ele já não me
insulta os olhos e nunca me escaldou a pele enquanto teu ventre foi a secreta
e serena morada do meu não-ser à beira-ser. Dentro de poucas horas chegará a Ti
Custódia, a aparadeira da freguesia, vem arrancar-me ao meu solaz bem-estar. A
Banda de Música reorganizará seus tocadores já todos tão mortos e tão ossadas,
e de novo tocará rua acima a mesma marcha arrebitada… Regressa da procissão de
Nossa Senhora da Luz, nos Fenais. O relógio de parede deixa-se de novo adormecer
na prateleira do canto do quarto, entorpecido pela melodia afinada do passo
dobrado que se eleva do caminho até à estrelinha do céu que minha Mãe escolheu só
para mim. Vai o relógio de ponteiros lassos despertar em sobressalto com as
batidas das nove horas da noite desse Domingo tão arredado e cada vez mais perto.
Meia hora falta apenas para que se cumpra o tempo — iniciará uma desatinada cavalgada
que depressa vai alcançar a meta dos setenta e três batimentos de um coração
tão velho e tão hoje, só o algarismo mais pequeno pôs um acento circunflexo, reflexivo,
tudo o resto ganhou gigas de perdas e danos… Cansados os olhos de te não olhar
e as mãos e os dedos de te não viajar o corpo e a boca de te não beijar — recosto-me
no ombro da lembrança das palavras cantadas ou contadas por ti, Mãe! Com elas
me embalarei e descerei os degraus do sono. Hei-de acordar-me para continuar a
ver-te através da nesga do futuro tão curto que ainda se não cerrou. Sinto
ainda as palavras. Quero prendê-las e sonhá-las. Não vou consentir que se ponham
em debandada. Não! Em surdina, descansas-me: ainda é cedo, murmuras-me, falta-te
cumprir um excedente de destino...
Cristóvão de Aguiar
Ilha do Pico, 8 de Setembro de 2013
Ilha do Pico, 8 de Setembro de 2013
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