Sou um dos milhares de cidadãos portugueses que pertencem
à chamada geração da Guerra Colonial. Ainda estive tentado a escrever o verbo
no pretérito, mas, como tantos outros camaradas meus, ainda sofro, e sofrerei,
as sequelas psicológicas que, durante os quase dois anos da minha estada no
inferno da então chamada província da Guiné portuguesa, para sempre me
machucaram a mente e o íntimo. Assim, a geração da Guerra Colonial só terminará
quando o último combatente fechar os olhos… Depois, talvez ela fique registada
em nota de rodapé, num capítulo da História do século XX português…
Existem, porém, milhares de outros que tiveram menos
sorte e continuam a padecer ainda mais. Aqueles a quem se deu o nome de
deficientes das Forças Armadas: mutilados, cegos, que viram as suas vidas
familiares desmanchadas, além de outras mazelas que os tornaram em seres
viventes cuja vida pouco sentido tem. Para já não falar naqueles que tombaram
na mata ao serviço de uma pátria apodrecida por um regime que mais não foi do
que uma nódoa histórica pregada no peito do país durante cerca de cinquenta
anos.
De ambos os lados da barricada, a guerra colonial foi
intensamente cruel e ainda está a sê-lo para muitas centenas, ou milhares, que
por lá andaram a esmigalhar os melhores anos da juventude. Isto de se falar em
terrorismo apenas do lado dos guerrilheiros tem muito que se lhe diga. As
nossas tropas também o praticavam em grande escala. Sobre tudo isso, porém, era
expressamente proibido falar. Havia ouvidos atentos a escutar, e existia medo,
ignorância, e a censura a compor o resto do ramalhete, torcendo a verdade
para construir a mentira oficial. Nem sequer havia guerra, afirmavam os donos
do regime e os cabecilhas. Andávamos tão-só em missão de vigilância nas províncias
ultramarinas, flageladas pelos “turras”, e que, como se devem lembrar,
constituíam o prolongamento natural da pátria, que ia do Minho a Timor, refrão
patrioteiro, que então se entoava e que alguns ainda gostariam de continuar a
solfejar.
Havia, pois, uma mantilha de silêncio caída sobre o
que ocorria nas três frentes de batalha. Pouco ou nada se sabia. As razões são
múltiplas e não serão despiciendas as que já apontei: censura, medo,
vigilância da PIDE, desinteresse do povo em geral, que só lhe importava se
tinha familiares que por lá combatiam — adeus, até ao meu regresso — e, quanto
à maioria dos soldados, não sabiam, nem queriam saber, das razões que os haviam
levado a ir matar e esfolar negros para um Continente que, segundo lhes
martelaram desde a catequese da escola primária, constituía um património tão
português como as suas aldeias da metrópole — “Angola é nossa”— tocavam as bandas
regimentais, nas cerimónias militares, por vezes acompanhadas por um coro de
vozes vibrantes de patriotismo…
Claro que havia quem estivesse a par das causas da
situação bélica em África. Principalmente muitos dos oficiais milicianos,
saídos das Universidades directamente para as fileiras, alguns por castigo,
por terem intervindo activamente nas crises académicas de 62 e 69; os que
haviam desertado antes que fosse demasiado tarde e seguissem para as cadeias
políticas do regime então em vigor; havia outros ainda que, mesmo na
clandestinidade, ou em plena guerra colonial, procuravam passar informações
de todas as maneiras e feitios que constituíam depois matéria-prima para a
rádio Voz da Liberdade, aos microfones da qual Manuel Alegre desempenhou um
papel relevante de informação e formação.
Porém, o silêncio, prolongou-se em demasia. Ninguém,
por mais ousado politicamente, se atrevia, em público, a falar da guerra colonial.
A primeira vez que ouvi gritar “abaixo a guerra colonial” foi numa Assembleia
Magna da Academia de Coimbra, cuja ordem do dia era a greve académica de 1969 que,
logo a seguir se realizou com tal êxito, que havia de abalar o regime. Mas, o
estudante que deu aquele grito de alma, sincero e lancinante, foi depois
admoestado pelos próprios companheiros, por ter dado razões aos elementos da
DGS, infiltrados entre a multidão estudantil, como toda a gente estava farta de
saber, e que nos acompanhavam na gritaria de vivas e morras, para que ninguém
desconfiasse da sua presença, o que não era difícil... Até onde chegava a
censura interior! A juventude de hoje não poderá compreender essa atitude de
uma prudência tal, que poderia facilmente confundir-se com cobardia…
E há ainda quem diga que perdemos a guerra por cobardia. Na minha freguesia havia um ricaço da União Nacional que, sempre que falava com meu Pai, lhe tecia loas por ter um filho (eu) a combater pela Pátria. Um belo dia, depois de eu ter voltado há muito da guerra, meu Pai confrontou-o com o facto de o filho ter já catorze anos e podia ser chamado, que a guerra não tinha fim à vista… Ficou aterrado e respondeu-lhe, oh mestre, sou capaz de o mandar estudar para os Estados Unidos, para se livrar do flagelo… Não foi preciso. Uma, porque o rapaz era estúpido como um calhau rolado; outra, porque o 25 de Abril viera entretanto pôr fim ao conflito. Nem assim o ricaço se convenceu de que o regime de que era sócio e bufo não tinha futuro. Continuou a defender Salazar e o seu regime e, por vingança ignóbil, enviava todo o seu dinheiro para a América, comprando todos os dólares que as pessoas recebiam de suas famílias emigradas… Bem gostaria eu que Paulo Portas e o filho do ricaço da União Nacional se tivessem integrado nas fileiras que a pátria deles alinhavam nos cais de embarque só para os outros…
E há ainda quem diga que perdemos a guerra por cobardia. Na minha freguesia havia um ricaço da União Nacional que, sempre que falava com meu Pai, lhe tecia loas por ter um filho (eu) a combater pela Pátria. Um belo dia, depois de eu ter voltado há muito da guerra, meu Pai confrontou-o com o facto de o filho ter já catorze anos e podia ser chamado, que a guerra não tinha fim à vista… Ficou aterrado e respondeu-lhe, oh mestre, sou capaz de o mandar estudar para os Estados Unidos, para se livrar do flagelo… Não foi preciso. Uma, porque o rapaz era estúpido como um calhau rolado; outra, porque o 25 de Abril viera entretanto pôr fim ao conflito. Nem assim o ricaço se convenceu de que o regime de que era sócio e bufo não tinha futuro. Continuou a defender Salazar e o seu regime e, por vingança ignóbil, enviava todo o seu dinheiro para a América, comprando todos os dólares que as pessoas recebiam de suas famílias emigradas… Bem gostaria eu que Paulo Portas e o filho do ricaço da União Nacional se tivessem integrado nas fileiras que a pátria deles alinhavam nos cais de embarque só para os outros…
muito,muito bom
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