terça-feira, 3 de junho de 2014

Conselho ao governo para resolver o problema dos cortes inconstitucionais (aproveitem que eu não duro para sempre...)

Em 2012, certamente inspirado em Ricardo Araújo Pereira, o Tribunal Constitucional inaugurou uma nova forma de inconstitucionalidade: é inconstitucional, mas deixa estar. Nesse ano, se bem se lembram, o TC declarou o Orçamento de Estado inconstitucional, mas deixou que vigorasse até ao fim do ano.

Agora, em 2014, declarou os cortes inconstitucionais, mas não exige que os salários inconstitucionalmente cortados sejam devolvidos. Ora isto abre uma nova linha de possibilidades de actuação para o governo: propor sucessivamente medidas que o TC vai declarar inconstitucional. Como não tem de ressarcir ninguém pelas inconstitucionalidades, vai sempre empurrando o problema com a barriga.

Os cortes agora chumbados afectavam rendimentos superiores a 675€. O que o governo tem a fazer é propor exactamente os mesmos cortes, mas começando aos 700€. Já sabemos que é inconstitucional, mas dado que o TC só lá para Dezembro é que decide, quando vier a decisão já é tarde. Se, por acaso, o TC for super-rápido e demorar apenas 3 meses até comunicar a sua decisão, pode o governo logo a seguir fazer aprovar os mesmos cortes a começar aos 725€.

Adenda: Pedro Brinca, recém-doutorado em Economia pela Universidade de Estocolmo, expressou esta mesma ideia ontem no seu facebook. É natural que um economista neoclássico tenha exactamente esta visão da decisão do TC, afinal isto é um exemplo prático daquilo que em Economia chamamos Moral Hazard.

12 comentários:

  1. Os mesmos cortes começando com 700€ são inconstitucionais? De certeza? Como é que sabes?

    Tudo o que sabemos agora é que se começarem em 1500E não são, mas se começarem em 675 já são. No meio é o mistério. Uma forma mais correcta é: "Cortes começando nos 700€ têm grande probabilidade de ser inconstitucionais".

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    1. "Os mesmos cortes começando com 700€ são inconstitucionais? De certeza? Como é que sabes?" Em bom rigor não sei, mas caso não sejam, o governo obtém o que quer, pelo que essa possibilidade em vez de relativizar a minha argumentação apenas a reforça.

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    2. Exacto, a possibilidade de poder ser constitucional só reforça a qualidade do teu conselho. Mas isto era mais um comentário à disciplina obscura do direito constitucional.

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    3. Eu tenho a ideia de que o argumento do TC foi de os cortes só são constitucionais se forem temporários, e portanto agravar os cortes iria contra essa temporariedade; se for mesmo esse o raciocinio, dos 1499 para baixo será inconstitucional.

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    4. O problema com isso é que se leres o acórdão que inconstitucionalizou o corte dos subsídios de férias e de Natal (em cima dos cortes de Sócrates) ficas com a ideia de que mais cortes são admissíveis. Os juízes apenas se queixam que cortar 2 salários adicionais é um exagero.

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    5. Caro Miguel Madeira,

      O TC aceita que os cortes temporários são constitucionais. Mais, aceita (ou aparenta aceitar) que se os mesmos forem feitos no âmbito de uma reforma geral do Estado, são aceitáveis. O problema aqui foram dois (e esta é a minha interpretação após 2 leituras do acordão... há-de vir a terceira dose do pastelão quando tiver paciência):

      - Primeiro, não existiu equidade na distribuição dos cortes. O TC calcula a taxa real de corte tendo por base a redução salarial mensal + o corte do 13º mês e chega à conclusão - não revi as contas - que esta nova tabela de cortes acaba por prejudicar os salários mais baixos e beneficiar os mais elevados, face aos cortes anteriores.

      - Segundo, o TC (baseando-se nos acordãos anterior que aceita o corte dos 13º e o que proíbe o do subsídio de férias), esta subida da taxa nos rendimentos entre os 650 e os 1500 (anteriormente isentos) é excessiva. Tendo em conta que a referência foi a reteridada dos subsídios, é de admitir que o limite inferior para os cortes serão os 1000 euros.

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    6. Como complemento ao meu pos, transcrevo do acordão:

      "E essa ilação adquire especial validade no que se refere à extensão da redução a remunerações que se situam entre os € 675 e € 1000, por se tratar aí de rendimentos muito exíguos, que anteriormente haviam sido excluídos do corte salarial – relativamente aos quais o Tribunal considerou já que qualquer sacrifício adicional seria excessivamente gravoso (acórdão n.º 187/13)-, e que seria de todo desrazoável que pudessem ser agora afetados a pretexto da necessidade de corrigir potencias desajustamentos do atual sistema retributivo da Administração Pública. "

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    7. O que o tribunal chama rendimentos "muito exíguos" estão acima da mediana dos ordenados em Portugal, se não me engano. Até posso concordar que são muito exíguos, mas se não se pode cortar acima da mediana, corta-se onde?

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  2. Caro LA-C,

    Concordo em absoluto. O TC deu um bónus fantástico ao Governo (seis meses de "sacanço inconstitucional") e eles ainda se queixam... ingratos.

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  3. Ao que chegámos... economistas de esquerda que sabem fazer contas, deitam-se a adivinhar as contas que permitiram chegar ao balanço confiança-igualdade.

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  4. Já agora, esclareçam-me uma coisa: tanto em 2012 como em 2014 foi declarada a inconstitucionalidade das referidas normas, mas em ambos os casos foi suspensa a sua aplicação, no primeiro caso por um ano, no segundo por 5 meses. Ora a suspensão ocorre no âmbito da sua aplicação na LOE. Mas sendo inconstitucional, não poderão os visados interpor acção judicial contra o estado para reaver os valores inconstitucionalmente retirados?

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    1. Em 2012 um caso desses chegou ao Tribunal Europeu que o considerou improcedente.

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