Após o eclodir da crise financeira de 2007-2008, surgiram na
Europa e em Portugal em particular três grandes narrativas ou histórias.
Chamemos-lhes a “narrativa da dívida”, a “narrativa do euro” e a “narrativa da
banca”.
A primeira sublinha sobretudo a má gestão da política fiscal
dos governos, que se endividaram demais e, por consequência, se expuseram
demasiado aos mercados financeiros em período de recessão. Esta história sugere
que o orçamento de Estado foi capturado por vários grupos de interesses e, como
a despesa pública cresce a um ritmo superior ao do PIB, só é possível manter o
atual estado de coisas com mais endividamento. Daqui decorre a necessidade das famigeradas "reformas estruturais".
A “narrativa do euro” aponta para as falhas institucionais
da zona euro, ao não permitir, por exemplo, que um estado saia temporariamente
da UEM para proceder a desvalorizações da moeda. Como corolário, defende-se uma
maior integração europeia, nomeadamente através de uma expansão do orçamento
comunitário, uma união bancária, etc.
Por fim, a “narrativa da banca” atribui as culpas da crise à
ganância dos banqueiros e às falhas dos reguladores.
A esquerda, desde o início, tentou centrar a crise na
“narrativa da banca”, atribuindo inclusive o problema (inegável) dos défices
excessivos do Estado ao resgate de alguns bancos. A direita, por seu lado, agarrou-se
sobretudo à “narrativa” da dívida”.
Tanto à direita como à esquerda, há, todavia, um certo consenso
sobre a existência de erros no design institucional do euro, e embora a maioria
das soluções apresentadas caminhe no sentido de uma maior integração europeia,
não há unanimidade sobre a melhor forma de lá chegar.
Com o tempo, impôs-se, na opinião pública, a “narrativa da
dívida”. Talvez porque fosse mais fácil de perceber pelo cidadão comum. A
metáfora da família que ganha 100 e gasta 150 e que, por isso, tarde ou cedo,
estará a braços com graves problemas financeiros é fácil de assimilar. Já as
manigâncias da banca e os erros da regulação são questões demasiado esotéricas
para a maioria dos cidadãos.
Cada uma destas narrativas tem um fundo de verdade, mas
nenhuma delas conta a verdade toda.
É inegável que há um problema de sustentabilidade da despesa
do Estado, que é muito anterior à crise. Entre 1980 e 2010, o nosso PIB cresceu
à taxa média anual de 2,4% enquanto a despesa primária do Estado evoluiu à taxa
de 4,2% (quase o dobro). Se nos concentrarmos no período 2000-2010, esses
valores são, respectivamente, 0,6% e 2,9%. Bastam estes números para se
perceber que, tarde ou cedo, Portugal acabaria por bater na parede. A crise
veio apenas acelerar o inevitável.
Por outro lado, parece hoje ridículo o discurso elogioso
sobre a solidez da banca portuguesa que nos foi impingido durante anos e anos,
inclusive após o eclodir da crise - lembram-se? E, retrospectivamente, parece
inacreditável a maneira acéfala e acrítica com que a maioria das elites
políticas e económicas nacionais acolheu o euro de braços abertos. Quando, por
exemplo, Milton Friedman afirmava que a moeda única não resistiria à primeira depressão
económica, os europeus (economistas incluídos) diziam, com arrogância, que se
tratava apenas do medo dos EUA da concorrência ao dólar.
Não se pode discutir seriamente a crise ignorando ou
desvalorizando qualquer uma destas “narrativas”. Qualquer solução que não tenha
em conta estas três facetas da crise está condenada a falhar.
Há uma quarta narrativa que não pode ser descartada e que, aliás, disputa com a moeda única as responsabilidades pela gestação da crise e pela anemia económica na Europa: a globalização e a consequente concorrência da China, Índia, etc., em segmentos da economia que representavam uma parte substancial do PIB e das exportações dos países economicamente frágeis.
ResponderEliminarPergunto-me se Portugal não tivesse aderido ao euro se teria sido evitado o destroçar das indústrias sutentadas pelo preço da mão-de-obra. Creio que não. A menos que o escudo tivesse caído para cotações competitivas com os preços concorrentes dos países asiáticos, o que teria implicado níveis de inflação elevados e a redução dramática dos salários de empregos não qualificados. Falou-se, na altura, muito na requalificação, reestruturação, etc. Coisas que não acontecem com o estalar do médio com o polegar.
Não desvalorizo o peso da responsabilidade do euro mas creio que tem sido sobrevalorizada. Trabalhei dezenas de anos numa indústria obrigada desde sempre a competir globalmente. Com a entrada no euro, os resultados não foram negativamente afectados.
Mas alinho ao lado daqueles que vêm nos banqueiros os grandes responsáveis pelos acontecimentos.
Os banqueiros ou as políticas que lhes permitiram andar à rédea solta, se partirmos do princípio que os banqueiros têm propensão natural para fomentarem desastres e mandarem-nos a factura das reparações a casa. Porque só eles, ou principalmente eles, sabiam os níveis de endividamento que estavam a importar e as mascambilhas em que se envolviam. A promiscuidade entre a política e a banca não poderia conduzir senão ao descarrilar dos atrelados.
Mas o que é incrível é que, no essencial, continua tudo na mesma.
Boas Festas
Feliz 2015!
Concordo, claro,que há uma "quarta narrativa", a "narrativa da globalização", sem dúvida, que é bastante importante. Mas era minha intenção identificar apenas as "narrativas" principais (há outras, claro) que surgiram no pós-crise e a narrativa da competitividade é anterior, já tem mais de uma década.
ResponderEliminarBom ano