"It is a truth universally acknowledged, that a single man in possession of a good fortune must be in want of a wife."A Lucy Pepper, no Observador, diz que não compreende o apelo das "Fifty Shades of Grey", de E.L. James, traduzido para português como sendo "50 Sombras de Grey". Não é difícil de imaginar de onde vem o apelo do livro e, ao contrário do que ela pensa, não tem nada a ver com pornografia. O livro foi escrito no contexto do sucesso de "Twighlight", a série "Crepúsculo", de Stephanie Meyer--nessse livro, toda a tensão sexual girava em torno de abstinência: a heroína queria ter sexo, o herói não queria porque era um vampiro e podia magoá-la ao ficar louco de desejo. O facto de ela querer e ele não, quando na realidade, o comum é que o oposto aconteça, fazia de Edward Cullen um "homem" muito desejável, pois ele salvaguardava os interesses dela e continha-se, a muito custo, sacrificando os seus--era a prova de amor suprema naquela fantasia. Se Edward Cullen tivesse sido um homem normal, não seria grande prova de amor que ele se contivesse assim; pelo contrário, se ele a amasse verdadeiramente, ela o enlouqueceria de modo a que ele não se contivesse com tanto desejo. Mas sendo ele um vampiro, muito forte, e que poderia pôr a vida dela em risco porque ela era mortal e frágil, já a história da abstinência pega com mais verosimilhança, quer dizer, faz de conta...Jane Austen, Price and Prejudice
E.L. James começou a escrever o seu livro num forum dedicado a prosa inspirada por "Crepúsculo", e notem que o conceito de abstinência foi multiplicado por (-1) e deu em sexo não convencional: muito e cheio de lascívia. Neste caso, o problema do homem é a sua perversão sexual: a sua necessidade de humilhar e magoar as parceiras para se excitar. No início, os jogos nem são muito violentos e ela tem prazer, e cria laços afectivos com ele. A miúda apaixona-se! Quem é que não se apaixonaria por um tipo bem parecido, com dinheiro, que gosta de música clássica, e que insiste em nos dar prazer? Vocês não viram o "Pretty Woman"? Até profissionais do sexo caem na esparrela. O mistério está em como um homem da sofisticação de Christian Grey se apaixona pela Miss Simple-Minded-Holy-Cow-Anastasia-Steele (infelizmente, não há uma boa tradução para a expressão "holy cow" em português...). Mas reparem que a maior parte das mulheres não são a Gisele Bundchen, logo elas revêem-se nas dúvidas e insegurança da Miss Steele e isso é um dos temas comuns a muitos destes romances. E, para além disso, no fim, a Anastasia consegue que o seu homem se vergue. (Sempre achei estranho que as pessoas se apaixonem por alguém e depois tentem mudar a pessoa por quem se apaixonaram. Se o objectivo era mudar o objecto de afecto, porque não encontrar um objecto que as satisfizesse sem ser necessário ele mudar?)
Em entrevistas, Stephanie Meyer admitiu que é grande fã de Jane Austen e, em especial, de "Pride and Prejudice". Edward Cullen, de "Crepúsculo", e Christian Grey, de "50 Sombras de Grey", são versões mais esotéricas de Mr. Darcy, o herói romântico de "Orgulho e Preconceito". Muitas mulheres americanas sabem o início de "Pride and Prejudice" de cor, que se traduz para português como "É uma verdade universalmente aceite que um homem solteiro em possessão de boa fortuna deve estar necessitado de uma esposa", aliás em conversas entre amigas nos EUA é muito comum fazer referência a Mr. Darcy. Dizem elas: "Ah yes, I am still waiting for my Mr. Darcy" ou "Well, he ain't Mr. Darcy, that's for sure!", referindo-se a potenciais parceiros amorosos. Note-se que o Mr. Darcy é o modelo de homem a que elas aspiram: um tipo que sabe gerir a sua fortuna, apesar de socialmente inepto, que as acha especiais e não tem olhos para mais ninguém, e que, acima de tudo, salvaguarda os interesses da sua amada, Elizabeth Bennett, mesmo quando ela o não aprecia e rejeita.
A fascinação por Mr. Darcy atingiu o climax com Colin Firth, quando este protagonizou a série de seis episódios da BBC, em 1995. A cena mais famosa é aquela em que Mr. Darcy sai do lago e dá de caras com Elizabeth Bennett, que se passeia sem ter noção de que ele está perto. Podem vê-la aqui. Colin Firth foi tão revolucionário nesse papel que ele apareceu como Darcy outra vez nos filmes do Diário de Bridget Jones, baseados nos livros que, sim, incluem o Mark Darcy para fazer referência à novela de Jane Austen. E o Colin Firth e o lago voltaram a encontrar-se em "Love Actually" onde ele protagonizava uma das histórias ao lado da Lúcia Moniz. Lembro-me de, no décimo ano, uma colega minha de explicação de matemática ter visto Colin Firth no filme "Valmont" e ter ficado completamente apanhada por ele. Eu li "As Ligações Perigosas" e vi o filme "Dangerous Liaisons" e fiquei apanhada pelo Valmont de John Malkovich; mas o Colin Firth é como o vinho da Madeira: fica cada vez melhor com a idade. O meu sonho é mesmo um Colin Firth: eu queria que um bartender inventasse um cocktail chamado "Colin Firth" para que eu pudesse entrar num bar e dizer "I'd like a Colin Firth, please!" Ou entrar na Pensão Amor, em Lisboa, e ir ao bar e pedir "Um Colin Firth, se faz favor..." Acho que seria glorioso. Em vez disso, como ainda não há Colin Firths, peço um gin e tónica com lima, com limão não é tão bom. De preferência, o gin é Bombay Saphire, mas o Tanqueray original faz um gin e tónica fantástico.
De regresso ao sexo... Há uma coisa nos homens que eu admiro bastante: quando eles estão com uma mulher, são muito bons a ensiná-la o que lhes dá prazer. Dizem para ela os tocar de certa forma ou guiam a mão dela ou o corpo dela. O inverso não é necessariamente verdade: muitos homens não querem receber instruções das mulheres e dizem coisas como "Eu sei o que estou a fazer." ou, se ela se estimula a ela própria, dizem "Esse papel é meu." No meio primeiro ano de faculdade nos EUA, há quase 20 anos, assisti a uma cena entre dois amigos meus que estavam a ter um caso. Ela dizia que o tamanho do pénis não era de todo relevante porque nem todas as mulheres conseguiam ter um orgasmo apenas por penetração; ele insistia que sim, que a penetração era o suficiente. (Digo-vos que a minha vida numa universidade americana no meio do Bible Belt era muito mais interessante em termos de conversas do que a minha vida em Portugal, na altura). Ela tinha razão. A cena de "When Harry Met Sally" em que a Sally diz que é perfeitamente possível a uma mulher simular o orgasmo sem que o homem se aperceba é clássica e ilustra exactamente isso: elas muitas vezes não se satisfazem, mas em vez de remediar a situação, fingem que se satisfizeram. E a propósito, "I'll have what she's having..."
As mulheres não são completamente inocentes nesta história porque muitas delas não conhecem o próprio corpo, nem sabem o que as excita. As "50 Sombras de Grey" são apenas uma desculpa para elas se explorarem a si próprias, é como se o livro lhes tivesse dado permissão para tentar coisas novas e para conversar com os parceiros sobre o assunto--o livro é uma bengala. Mas isto não é a primeira vez que acontece. Quando a pílula foi lançada nos EUA, algumas mulheres iam a bares e tomavam a pílula em público, à frente de homens, para lhes dar a informação que elas estavam interessadas em sexo descomprometido e estavam preparadas. A pílula era a bengala.
Não concordo com a asserção de Lucy Pepper de que a pornografia se tornou viral por causa deste livro. Pelo contrário, o livro é uma manifestação de um fenómeno que é maior do que o livro. Basta pensar que o Tumblr está cheio de pornografia e essa foi uma das questões mais discutidas quando a Yahoo o decidiu adquirir. Hoje em dia há estudantes universitárias que abertamente se identificam como actrizes de pornografia, como Belle Knox na Universidade de Duke. E antes do "Crepúsculo" ou das "50 Sombras de Grey", já uma prostituta inglesa tinha usado o pseudónimo "Belle de Jour" para assinar um blogue sobre os seus encontros profissionais e as preferências sexuais dos seus clientes. ("Belle de Jour" é o título do filme de Luis Buñuel, de 1968, sobre uma dona de casa que se aborrece e decide tornar-se prostituta.) Esse blogue foi iniciado em 2003 e deu azo a livros e séries televisivas. Note-se que essa mulher, Brooke Magnanti, é hoje doutorada--há cada vez uma linha mais tenue entre o subversivo de antigamente e o normal de hoje. No Brasil, houve um blogue de uma prostituta, a Bruna Surfistinha, que deu em filme também. No que diz respeito ao sado-masoquismo, em 2005 um bancário francês, Édouard Stern, que mantinha uma relação sado-masoquista com a sua amante, foi assassinado por esta a tiro e o caso foi suficientemente acompanhado pelos media que um filme inspirado nele saiu em 2013.
Ou seja, como canta o Joe Jackson, numa canção genial, "às vezes a vida é mais estranha do que a ficção". As "50 Sombras de Grey" são o espelho de uma realidade alternativa que se torna agora normal.
Gostei de ler e sem dúvida inclino-me mais para esta perspectiva do fenómeno do que a da Lucy Pepper.
ResponderEliminarSe até uma mulher (que imagino que seja a Lucy P) consegue não entender, ou atirar um pouco ao lado, dá para perceber o quanto este fenómeno é misterioso para os homens que, se forem daqueles que não gostam das mulheres e as maltratam vêm logo aqui uma confirmação que "elas gostam é de apanhar, do sexo à bruta, da submissão, etc", não entendem como podem as mulheres lutar pelo feminismo e adorar o livro.
Eu confesso que nunca entendi este fenómeno do livro pois sempre só consegui ver ali a violência, e o abuso. Algo que cada vez mais é condenado por todas as mulheres e eleito como o principal problema nas relações da mulher e do homem na sociedade.
As 50 sombras de Grey, parece-me que vem dar vários passos atrás neste processo, já por si tão difícil, de mudança de mentalidades e na condenação absoluta da violência doméstica.
Obrigada. É interessante que ela se mostre tão surpreendida porque ela é inglesa e o Mr. Darcy é também um fenómeno inglês. As americanas são muito dadas a rituais e a geração das mulheres que tem uma formação universitária gosta muito do livro de Jane Austen e referências a esse livro são comuns nos EUA.
Eliminar"fazia de Edward Cullen um 'homem' muito desejável, pois ele salvaguardava os interesses dela". Isso significa que as mulheres (e não estou a excluir os homens) apreciam o paternalismo. Mais uma para a lista...
ResponderEliminar"Sempre achei estranho que as pessoas se apaixonem por alguém e depois tentem mudar a pessoa por quem se apaixonaram. Se o objectivo era mudar o objecto de afecto, porque não encontrar um objecto que as satisfizesse sem ser necessário ele mudar?" Eu imagino que a pergunta fosse retórica, mas vou arriscar uma resposta não exaustiva. Para algumas pessoas (arriscaria a dizer que maioritariamente mulheres) trata-se da sua índole salvífica. Para outras, o que lhes agrada é mesmo o desafio de moldar o outro, sobretudo se envolver algum grau de "domesticação".
Eu não acho necessariamente mau que se procure mudar a pessoa com quem se está. Desde que não se queira mudá-la estruturalmente. E que a mudança seja desejada por ambos. Costumo dizer que as pessoas são como casas. Eu não deixei de comprar a minha porque as paredes eram brancas: mandei pintá-las das cores que desejava. Mas se quisesse uma cozinha maior e a sala transformada em duas e o chão de outra madeira e os roupeiros com outras portas... bom, então, talvez aquela não fosse a casa certa para mim. O problema é que as pessoas não fazem muito ideia do que querem. Na verdade, acham que, contrariamente à busca de uma habitação, não faz sentido ter um elenco de características fundamentais, das que são apreciadas, mas secundárias e das que não podem apresentar. Acham que a paixão, que o amor, não é compatível com isso, porque razão e emoção têm de ser mutuamente exclusivas. Quando eu entrei no apartamento que veio a ser meu, exclamei "É isto!". Não fosse eu tão ciosa das palavras e diria que me tinha apaixonado por ele. E não andei de check list em punho. Mas inconscientemente ela estava lá e quando fui verificar, já numa fase posterior, mais ponderada, bateu certo.
Sim e não. Sim, elas têm uma preferência pelo paternalismo e tu mencionaste-o mais tarde, chamando-lhe de "índole salvífica". Na minha opinião pessoal isso vem da selecção natural da espécie: as mulheres que tinham preferência por homens que as protegiam tinham muito mais probabilidade de sobreviver e o mesmo aconteceu aos seus filhos, logo essa característica é fácil de encontrar.
EliminarNós, quando estamos com outra pessoa, mudamos, quer queiramos quer não. Mas o meu à parte é mesmo no sentido de certas pessoas quererem mudar as outras em questões fundamentais. No caso de Christian Grey, aquilo é complexo pois teríamos de considerar se as preferências sexuais dele são uma perversão ou se são uma coisa natural. Acho que a Anastasia vê-as como perversão e, como tal, ele deve modificar-se. Eu estaria inclinada a dizer que são uma preferência natural, pois há pessoas que gostam de sado-masoquismo. Eu não entendo o porquê da preferência, mas não as julgo e também não me meto com elas.
Sara e Vera, não se esqueçam que o My Fair Lady é um clássico!...
EliminarÉ a história do Pigmalião, que vem da mitologia grega. A culpa disto tudo é dos gregos, obviamente... E por falar nisso, tenho de ver o filme do Pasolini, "Édipo, Rei".
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