sábado, 4 de abril de 2015

Inglês toda a gente sabe!

Agora que o mundo está bombardeado pela cultura anglo-saxónica, especialmente a americana, o inglês tornou-se universal e, como tal, pouco ou nenhum valor tem porque toda a gente sabe inglês. É uma visão muito limitada do mundo. Há muito pouca gente que sabe comunicar bem em inglês, mesmo nos EUA. E essa não é a tristeza maior; a tristeza maior é o nível de ignorância acerca da própria ignorância. É uma coisa nós escrevermos algo errado e sabermos que está errado, mas é o melhor que podemos fazer na altura e não temos oportunidade de fazer melhor; é outra escrevermos algo errado e nem sequer termos noção de que está errado, logo não há maneira de como melhorarmos.

Nos EUA, passo muito tempo a corrigir o inglês de outras pessoas, a maior parte delas americanas. Ainda esta semana enviei um email a um antigo colega meu e ele respondeu imediatamente e disse que tinha muitas saudades minhas e de ter conversas inteligentes comigo. Ele está rodeado de pessoas que sabem inglês e, no entanto, eu era uma das poucas pessoas a quem ele dava o que escrevia para eu corrigir e apreciava as minhas correcções e até melhorou depois de eu começar a corrigir as coisas dele. Mas, a razão pela qual eu comecei a editar os textos dele foi completamente fortuita.

Um dos analistas na minha equipa foi contratado depois de terminar o mestrado. Era um jovem americano e parte do trabalho dele era escrever umas newsletters semanais, para além dos comentários diários. Alguns meses depois de ele começar, aparece o meu supervisor à porta do meu gabinete e diz-me que a partir dessa semana eu iria editar as newsletters da nossa equipa toda, com particular atenção para as newsletters do analista novo. E eu pensei que aquilo estava muito esquisito, para além de me meter numa posição muito delicada pois, de um momento para o outro, eu ia editar as newsletters de pessoas que já as escreviam há mais de 20 anos. Nestas situações é preciso muita diplomacia e humildade.

Quando eu li a primeira newsletter do analista novo, percebi tudo. Aquilo era péssimo, era ele a razão pela qual eu tinha sido convidada a editar o trabalho de toda a gente. Era ele quem precisava de ajuda, mas não queriam que ele levasse a mal. Não julguem que o trabalho dele era péssimo porque não era. O que era péssimo era a forma dele comunicar e notem que ele sabia inglês. O principal problema advinha do estilo. Ele não tinha estilo próprio, o que não era de admirar porque estava a iniciar a sua carreira e, por isso, tentava imitar a escrita de um dos analistas mais antigos, que usava uma linguagem que já nem se usa. E, ao fazer isso, acabava por piorar a situação. O mais engraçado era que este jovem, que tinha 24 anos, parecia extremamente confiante e, no entanto, ao ler o que ele escrevia, era muito notória a sua insegurança. Vale sempre a pena nós pormo-nos no lugar da outra pessoa e tentar pensar o porquê das suas acções. A tal história que o Zé Carlos explorou no post sobre Adam Smith. Havia também algumas questões técnicas, como uma grande verbosidade na maneira de ele se expressar, logo o texto não só não fluía, como as ideias estavam constantemente a ser interrompidas e, por vezes, havia coisas que podiam ter interpretadas de várias maneiras.

Às sextas-feiras, ele escrevia, enviava-me por email, e depois eu dizia-lhe o que é que eu não percebia, aconselhava-o a ser mais fluído na escrita, não usar tanto a voz passiva, e, acima de tudo, eu dizia-lhe que quando eu lia o que ele escrevia eu não ouvia a voz dele. Ouvia alguém a tentar ser outra pessoa. Às vezes, ele vinha para o meu gabinete e conversávamos sobre estilo, outras vezes sobre os aspectos técnicos do mercado que ele analisava. Acima de tudo ele precisava de alguém que lhe desse permissão para ele descobrir a sua maneira de escrever e o guiar nessa descoberta. E ele desabrochou. Ao fim de três meses, entra o nosso supervisor no meu gabinete e pergunta-me o que é que eu fiz porque ele estava completamente diferente e estava muito bom. Tão bom, que alguns meses mais tarde foi caçado por uma multinacional americana.

Foi por causa deste episódio, que eu comecei a editar também as newsletter do outro nosso colega que não era da nossa equipa, logo o trabalho dele não fazia parte das minhas responsabilidades. É uma pessoa que já está no topo da carreira, muito simpático, competente tecnicamente, e com quem é muito agradável conversar; mas, depois, a escrever, atrapalha-se um bocado porque quer usar uma linguagem que é muito coloquial e é extremamente difícil escrever bem assim. Ele tinha alguns problemas com a gramática, mas também havia problemas porque alguns dos coloquialismos que ele usa são obscuros e geograficamente circunscritos e nem toda a gente os conhece.

Por vezes, esse meu colega perguntava-me como é que eu conhecia tantos coloquialismos americanos. Eu aprendi muitos a ver filmes, mas também os aprendi quando estudei na universidade, aprendia com os alunos americanos que viviam na mesma residência que eu. Eu sempre tive uma grande facilidade em integrar-me com os americanos; já com os portugueses não a tenho. E já devem ter reparado que o meu sentido de humor é também muito americano, especialmente da parte sul dos EUA. No norte, as coisas são menos amigáveis. Mas vocês já devem ter ouvido a expressão "southern hospitality"--se querem ser bem recebidos nos EUA, têm de vir ao sul e beber muito chá fresco açucarado. Y'all holler, you hear? (Se cá vierem, avisem!)

Bem, mas o que eu vos queria transmitir é que há a ideia de que basta saber inglês para comunicar bem em inglês. Não é verdade. Uma comunicação efectiva, em qualquer língua, tem de ser, não só tecnicamente correcta, mas também tem de ser clara e bem estruturada porque tem de ser persuasiva. Com certeza, lembram-se de ter aprendido acerca de ruído na comunicação quando andavam na escola primária e no ensino preparatório. No inglês americano efectivo, que é usado no ambiente profissional, as pessoas exprimem-se muito delicadamente, mas com objectivos claramente definidos. Muitas vezes, eu vejo coisas escritas que não transmitem nada porque quem as lê não fica com um plano de acção claro.

Por exemplo, numa correspondência na qual se faz uma observação negativa, a resposta é sempre virada para ser uma coisa positiva. É sempre criada uma oportunidade para quem criticou, ou fez mal, contribuir para a melhoria, mas não há subserviência; pelo contrário, há uma clara delineação do direitos e responsabilidades de cada um. Vou dar-vos um exemplo que encontrei hoje num blogue de uma rapariga americana (Summer Wind). Ela recebeu o seguinte comentário negativo e eu achei que a resposta dela foi extremamente boa.

Your blog is turning away readers because of all the freebies you're flaunting. We are getting smarter by not clicking on the enticing links in order for you to make profits and personal gains of merchandise. If you returned to the days of not blogging like this, you'd gain a lot more respect and dignity. The teenage crowd hasn't caught on yet, but people are talking.
Na resposta que se segue, ela foi muito cordial, defendeu o que faz, disse que o leitor tinha sido indelicado na forma como se exprimiu, e deu ao leitor opções para agir de forma a ela melhorar o que faz. Se o leitor não fizer nada, a presunção é que não há lugar a melhoria. Diz ela:
I’m so sorry you feel that way and really appreciate you taking the time to give me your feedback. According to my google analytics my blog has grown tremendously in the past year (which is really exciting for me and something I am proud of), so while I appreciate your feedback, my analytics do not support your statement. If you have read my blog in the past, I really appreciate your readership! If you no longer enjoy reading, by no means do I expect you to continue to read.

While I am appreciative of your feedback, I am not going to lie, I do have to say that the way you delivered your constructive feedback, hurt my feelings.

I put a lot of hard work and effort into my blog and it is a hobby for me and something I enjoy doing. Getting ‘freebies’ is a wonderful perk from blogging and I always let readers know when I receive things from companies and I also have an entire ‘disclaimer’ section on my site. Blogging is not my job, I have a full time job working for a digital advertising agency. Again, I’m sad to hear that it sounds like I am losing you as a reader! If you have any specifics as to how you’d like to see me improve as a blogger or have post topic ideas, I’m very open to your suggestions and ideas and you can email me directly at SummerWind41490@gmail.com.

Notem que a comunicação é curta e clara. Agora deixo-vos um exemplo que eu escrevi para um amigo meu, que estava a ser prejudicado--este é um email zangadinho. Ele tinha um produto numa leiloeira e a leiloeira decidiu mudar a data em que iria oferecer o produto dele sem o informar da decisão. Para manter a confidencialidade da situação, eu retirei as referências à leiloeira e ao tipo de produto e mudei as datas dos leilões:

Dear X

Thank you for letting me know that you will not be featuring my product in the Feb 5 auction; however, I cannot accept your apologies. From your email, I gather that you found it more profitable to feature someone else’s product in this auction; by postponing my product to be featured in June, you have, in effect, more than doubled the turn-around time that I had allocated for my product, thus cutting my earning rate in half. So, you have reaped the benefits and imposed your cost on me.

This is not the type of customer service that I expected of your auction house; but, if this is your standard way of doing business, I will not be seeking your services any more. I expect you to offer me some sort of compensation for this sorry state of affairs. As you surely recall, I mailed you the product promptly, more than two and a half months ago. You have had plenty of time to inform me of your change of plans and to work with me to find a mutually beneficial solution. Your failure to do so is inexcusable.

Thus, I expect you to either waive a portion of your listing fee for the June auction or to ship the product back to me as soon as possible and at your own cost, so that I can seek the services of another auction house.

Best regards,

Y

O assunto foi resolvido e ambas as partes ficaram satisfeitas, apesar do SNAFU inicial.

Há mais de um ano, fui ao site da AICEP. Nessa altura, os responsáveis de topo tinham o seu CV em inglês na página. Abri um ou dois. O inglês era péssimo. Senti vergonha que o nosso cartão de apresentação a investidores estrangeiros fosse assim tão pouco polido. Nem toda a gente sabe inglês: isso é mais outra ilusão que muita gente tem.

3 comentários:

  1. Olá,
    Se sabe realmente mais inglês do que a média, podia fazer a todos um favor e fazer umas boas traduções. Claro que há tradutores aos molhos, mas a economia está na moda e os livros de divulgação para o grande público em português são francamente sofríveis. Dou só o exemplo do "Pensar, Depressa e Devagar," do Daniel Kahneman, que são umas dececionantes quinhentas páginas de nada.

    B.

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  2. Obrigada. Mas não, na minha opinião, a questão não é traduções. A questão é que saber inglês é uma ferramenta que nos projecta muito mais além de Portugal. Pensar que inglês só serve para fazer traduções não é exacto e é limitativo.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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