David Ricardo achava que o aumento da dívida pública seria
anulado com um aumento da poupança privada porque, se assim não fosse, seria a
geração seguinte a ter de pagar a dívida contraída pelo governo no presente. O facto
de as gerações estarem ligadas por heranças aos herdeiros deveria bastar para
assegurar essa sensibilidade em relação ao futuro. A história mostra que as
coisas não são bem assim. Seja por «ilusão fiscal», seja por pura indiferença
em relação ao futuro financeiro da próxima geração, a “geração presente” não
parece comportar-se de forma altruísta em relação aos seus herdeiros. Esta
realidade tornou-se mais evidente nas últimas décadas.
Entre 1960 e 1992, nos países industrializados, as
transferências e subsídios subiram de 8 para 21% do PIB – Portugal também
atingiu estes patamares na última década. Esta evolução do chamado
Estado-providência gerou algumas perversões. Por exemplo, no Reino
Unido, o quinto da população mais rica recebe mais 40% da despesa pública na
saúde do que o quinto da população mais pobre - para o ensino secundário e
universitário, os valores são, respectivamente, 80% e 500%.
De qualquer maneira, não há dúvida de que o Estado-providência reduz
bastante a desigualdade inerente ao capitalismo. Sem as transferências e os subsídios, em 1991, na maioria dos países europeus, mais de um quinto de
todas as famílias ficaria com menos de 40% do rendimento familiar médio. Graças
às transferências e aos subsídios, a percentagem de famílias em “pobreza
profunda” reduz-se a 5% ou menos.
Este crescimento do Estado-providência só foi possível com um
grande aumento da dívida pública. Daqui resulta, para muitos, outra perversão,
mais concretamente: uma transferência adicional dos contribuintes para os
“rentistas” (os detentores de obrigações) sob a forma de juros da dívida. Esta
foi uma consequência imprevista do Estado-providência: a ressurreição dos
rentistas. Grande parte da esquerda não vê (ou não quer ver) a ligação entre a
expansão do Estado-providência e o poder inaudito dos “rentistas” ou
“especuladores”, como gostam de lhes chamar.
Durante grande parte do século XX (em especial nos anos
1920), foram os rentistas que se lixaram nas situações de aperto. A
hiperinflação (o seu maior inimigo) levou à “eutanásia dos rentistas”, como lhe
chamou Keynes. Desta vez, até porque os rentistas aprenderam a lição, o
ajustamento está-se a fazer com o aumento dos impostos, sobretudo os do consumo
– nos anos 1920 a correlação de forças era diferente e havia o medo do
comunismo, o que levou os governantes a preferirem sacrificar os rentistas.
Em 2001, Niall Ferguson em “The cashus Nexus” (publicado
recentemente em português com o título “A lógica do dinheiro”, donde retirei
todos os dados acima referidos) previa que as dívidas públicas da maior parte
dos países ocidentais se tornariam insustentáveis no curto prazo. Não se
enganou.
Fergunson acha que o Estado-providência conseguiu, em grande
medida, acabar com as velhas disputas entre rentistas, empresários e
trabalhadores. Mas o preço foi um sistema de direitos universais que se tornou
insustentável.
Segundo Ferguson, as “contas geracionais” (impostos líquidos
totais durante vidas completas, ou seja, é a soma de todos os impostos futuros
que os cidadãos nascidos em determinado ano pagarão durante as suas vidas,
segundo a política actual, menos as transferências que receberão) estão
desequilibradas na maior parte dos países ricos – o caso é mais grave em países
como os EUA, Finlândia, Espanha e Suécia.
Ora, este desequilíbrio das “contas geracionais” torna
inevitáveis futuros cortes na despesa ou aumentos de impostos. Das duas, uma:
ou a próxima geração acabará a pagar impostos mais elevados para as pensões e
outras transferências da presente geração, incluindo os juros das obrigações;
ou os direitos dos idosos são reduzidos, com cortes nas pensões e um aumento
forte da inflação (penalizando sobretudo os rentistas), e neste caso a conta
será de novo paga pela geração que a gerou. Pode haver alguns paliativos: maior
crescimento económico ou aumento da imigração – os imigrantes estarão em
princípio em idade de trabalhar e de pagar impostos. Infelizmente, como é sabido, os sinais
não são positivos a esse respeito, nomeadamente com a expansão dos partidos nacionalistas e xenófobos e de leis anti-imigração, o que é, à primeira vista, contraproducente em termos dos interesses económicos da sociedade a longo prazo.
Em princípio, os políticos, por motivos eleitorais, tenderão
a privilegiar os mais velhos, até porque muitos dos futuros contribuintes ainda
não nasceram sequer e, portanto, não votam, para já.
A idade não tem constituído uma fractura política decisiva.
Mas o risco existe. Resumindo o argumento de Ferguson: o Estado-providência
resolveu, em parte, as tradicionais disputas de classes (rentistas, empresários
e trabalhadores), mas, se não for reformado, levará ao agravamento de um novo tipo de conflitos entre gerações.
"Pode haver alguns paliativos: maior crescimento económico ou aumento da imigração"
ResponderEliminarou uma maior redistribuição em tempo real, isto é, dentro da própria geração, entre os mais ricos e os mais pobres ao nível da mesma unidade temporal
God bless you!
Immanuel
Por uma questão de "justiça social", devia haver, de facto, uma melhor redistribuição,dentro da mesma geração - até vêm no post números que justificam essa necessidade. Só que isso, por si só, não resolve o problema. Os custos totais têm de diminuir, é esse o ponto. Antes de 1945, e do famoso relatório de William Beveridge, já existia um Estado-providência - a designação Welfare State foi usada pela primeira vez em inglês em 1928, pelo bispo anglicano de Manchester, William Temple. O que é novo após 1945 é a universalização dos serviços, e é isso a grande causa da insustentabilidade do sistema.
EliminarHá aqui algumas coisas que me parecem mal interpretadas.
ResponderEliminar"Entre 1960 e 1992, nos países industrializados, as transferências e subsídios subiram de 8 para 21% do PIB. Esta evolução do chamado Estado-providência gerou algumas perversões. Por exemplo, no Reino Unido, o quinto da população mais rica recebe mais 40% da despesa pública na saúde do que o quinto da população mais pobre." Isto não é obrigatoriamente uma perversão - pode ter a ver com maior esperança de vida, nem significa uma redistribuição regressiva, pois o quinto mais rico também contribui com muito mais do que o mais pobre (qualquer coisa como 10 vezes mais).
Para mim, é uma perversão no sentido em que os mais ricos recebem muito mais dinheiro do Estado do que os mais pobres, independentemente de pagarem também muito menos, ou de por vezes nem pagarem no caso dos impostos do rendimento. Se o objectivo é uma maior justiça e coesão social, faz sentido os mais ricos receberem muito mais em termos de saúde e educação? Para mim, não faz.
Eliminar"Se o objectivo é uma maior justiça e coesão social, faz sentido os mais ricos receberem muito mais em termos de saúde e educação?"
EliminarComo muitas vezes em economia, a resposta depende da alternativa. Se a alternativa for a não existência deste esquema de transferência então faz todo o sentido. Se alguém paga 10 vezes mais e apenas recebe 0,4 vezes mais então está, de facto, a transferir-se rendimento dos mais ricos para os mais pobres. Não faz sentido defender o fim dessa transferência como argumento de que a transferência deveria ser maior.
"Se a alternativa for a não existência deste esquema de transferência então faz todo o sentido."
EliminarPode haver um sistema progressivo de tributação sem implicar que os ricos recebam mais do Estado que os pobres, ou não pode? O que, provavelmente, vai ter de ser revisto a prazo é a existência de direitos universais, a universalização dos serviços, e não é só por uma questão de justiça social (discutível, pelos vistos), é sobretudo por uma questão de sustentabilidade do sistema
Tu dizes que é injusto os ricos pagarem MUITO mais do que os pobres e receberem um POUCO mais do que os pobres. Portanto, a questão não está na progressividade dos impostos. Podes aumentar imenso a progressividade dos impostos que não vais alterar o facto de os ricos receberem um pouco mais.
EliminarA única forma de fazeres com que recebam menos é essa mesmo, reduzir aquilo que recebem. Por exemplo, uma solução seria que cada um descontar para a reforma conforme o que ganha (progressividade) mas todos receberem exactamente a mesma reforma. Eu não gostaria disso.
"uma questão de sustentabilidade do sistema"
EliminarAqui estamos em desacordo. No momento em que deixar de ser universal, ou seja no momento em que os ricos deixam de beneficiar dos seus impostos, vai passar a ser muito mais difícil convencê-los de que devem continuar a pagar impostos.
És capaz de ter razão na questão da disponibilidade dos ricos para continuarem a pagar impostos se os serviços deixarem de ser universais, a qualidade dos serviços até podia baixar e tudo. Mas isso só complica ainda mais as coisas. De qualquer maneira, o Estado-providência nem sempre foi universal, a universalidade é uma originalidade do pós-guerra. Espero bem que o Welfare state não acabe, é uma questão civilizacional garantir um mínimo de dignidade a toda a gente, tem é de ser reinventado, como está é insustentável. Mas parece que estamos de acordo numa coisa: essa reinvenção vai ser muito complicada e difícil e, por isso, é bom as pessoas irem trocando umas ideias sobre o assunto.
Eliminar"No momento em que deixar de ser universal, ou seja no momento em que os ricos deixam de beneficiar dos seus impostos, vai passar a ser muito mais difícil convencê-los de que devem continuar a pagar impostos."
EliminarDou o meu exemplo "familiar" com a ADSE. Eu trabalho no privado, mas a minha mulher é funcionaria pública. Fizemos as contas e ela optou por desistir da ADSE, após a nova subida da taxa de contribuições - porque, no curto-médio prazo não compensa e fica substancialmente mais caro que um seguro privado (no longo prazo interessa-me menos, até porque não sabemos se estaremos por Portugal).
Portanto, e pegando na frase do LA-C, os serviços têm de ser universais E obrigatórios. O erro na ADSE foi terem eliminado as duas coisas em simultâneo (a universalidade, ao criar situações onde é pouco atractiva; e a obrigatoriedade, ao torná-la opcional).
Em relação às pensões, sou mais adepto de sistemas mistos "à suiça" (eventualmente com o pilar não-estatal ser primordialmente associativo ou cooperativo, como as antigas Caixas de Previdência), com o Estado a garantir uma "pensão base" fixa ou como variabilidade reduzida (no sistema suiço "varia" entre uma pensão base e duas vezes esse valor) para quem tenha uma carreira contributiva completa (em anos).
Sinceramente não me parece que a universalidade seja por si só um problema. A universalidade diminuir a justiça social não colhe, como indicado pelo LA-C, a questão de diminuir a sustentabilidade diretamente também não me parece verdadeira.
EliminarA questão parece-me antes o seguinte: enquanto existir generalizada uma "névoa da ignorância" em termos individuais ou coletivos, é mais fácil convencer todos a contribuir para um sistema de seguro coletivo. A partir do momento em que avanços educacionais e tecnológicos tornam mais fácil dissipar essa névoa, as questões (individuais ou de grupo) de deve/haver tornam-se preponderantes. Simultaneamente termos (em parte justamente pela universalidade da rede de segurança) como garantido que não vamos sofrer problemas catastróficos leva mais uma vez muitos a considerar muitos serviços públicos como bens que "poderiamos" contratar a um preço mais baixo se não fossem universais. O que leva ao aumento dos serviços prestados para melhorar o valor percebido. Ou seja, indiretamente, a universalidade do estado providencia pode ser a causa quer do aumento do custo do mesmo quer da resistência a pagá-lo.
Caro iv,
EliminarExactamente por isso (e pegando no meu exemplo da ADSE) é que os sistemas assistencialistas universais (seja na saúda ou seja nas pensões) têm de ser obrigatórios. Quando se discute - como já discuti em alguns blogues liberais da nossa praça - opções de "opting out" que implicam a não-contribuição, está-se completamente a falhar o alvo.
Um coisa são sistemas de contribuição obrigatória E uso exclusivo (i.e. um sistema de saúde onde só existe o sistema público, sendo a prática de medicina privada proibida), que são de facto um atentado à liberdade das pessoas. Outra coisa são sistemas de contribuição obrigatória mas de uso não exclusivo (eu tenho o direito de usar ou não, mas contribuo sempre). Esses, e desde que haja uma vontade da maioria da Sociedade onde me enquadro - via voto - não me atrapalham minimamente e, em alguns casos, são de facto a melhor solução.
"Este crescimento do Estado-providência só foi possível com um grande aumento da dívida pública."
ResponderEliminarSerá? Os cálculos que o Pedro Romano tem feito parecem indicar que não
https://desviocolossal.wordpress.com/2015/04/15/a-morte-do-estado-social/
[o post é sobre deficits e não sobre dívidas, mas penso que uma coisa está ligada à outra - as dívidas são deficits acumulados]
"previa que as dívidas públicas da maior parte dos países ocidentais se tornariam insustentáveis no curto prazo. Não se enganou."
Com juros abaixo de zero em grande parte dos países ocidentais, as dívidas desses países parecem-me bastante sustentáveis no curto prazo.
Argumentar que as dívidas são sustentáveis com base em juros ligeiramente negativo é um mau argumento. Isto resulta, simplesmente, dos programas de QE que ninguém dirá que são sustentáveis.
EliminarSe os programas de QE não têm provocado inflação, isso não quererá dizer que o "juro natural" será mesmo perto do zero?
EliminarClaro que se pode dizer que as tais taxas de juro próximas de zero só são possíveis devido à crise económica, que deprime a procura, e que quando a economia regressar à normalidade os juros também regressarão; mas por outro lado, o que penso seram as únicas evidências empiricas da insustentabilidade da dívida pública (as crises da dívida portuguesa e grega - creio que as espanhola e irlandesa foi um filme diferente) também ocorreram no contexto dessa crise económica (e se não fosse a crise económica, era de esperar que os deficits fossem menores, e que as espetativas de diluição da dívida via crescimento fossem maiores - logo, sobretudo no caso português, talvez a crise da dívida nem tivesse existido).
EliminarNão se pode querer sol na eira e chuva no nabal - ou se descarta os juros nulos/negativos e a crise da dívida grega e portuguesa (porque ocorrem/ocorreram no contexto de uma crise económica global), ou não se descarta nenhum.
Por diz que ninguém dirá que os programas de QE não são sustentáveis?
EliminarOs juros negativos não resultam necessariamente do QE. Os EUA já têm QE salvo erro há mais de oito anos sem juros negativos. Quanto a mim os juros negativos foram uma opção independente do QE muito acertada por parte do BCE, pois desincentivam a acumulação excessiva de liquidez por parte das grandes empresas como aconteceu nos EUA.
"Este crescimento do Estado-providência só foi possível com um grande aumento da dívida pública." Isto não é também muito correto. Suiça, Suécia, Finlândia, Dinamarca, Noruega Nova Zelândia, Austrália, Taiwan, Coreia do Sul, estão entre os países com Estado providência bem desenvolvidos e com baixos níveis de dívida pública. Ao contrário destes os EUA, pouco conhecidos pelos seus excessos de estado providência, têm uma divida pública (em % do PIB) que é mais do dobro da de muitos destes países. O reverso também é verdade, entre os países fortemente endividados há muitos sem Estado providência relevante. A divida acumula-se porque se gasta mais do que o que se arrecada em impostos, muitas vezes apenas mais 5 ou 10%, o que significa que 90 ou 95% da despesa era sustentável para o nível de impostos que se tinha. Há muitas outras razões para o endividamento.
ResponderEliminarMuito diferente de tudo isto é a ideia do peso que a segurança social pode ter sobre os contribuintes. Peso que pode vir a ser muito forte. Mas isso tem mais a ver com baixo crescimento e envelhecimento.
Relendo, vejo que a minha frase não está bem conseguida. Reformulando: "Este crescimento do Estado-providência só foi possível com um grande aumento da dívida pública e dos impostos." Mais: quando os impostos atingiram o limite do suportável ( e há com certeza um limite, que dependerá de país para país), a expansão do Estado-providência só foi possível com um grande aumento da dívida pública. Durante séculos, os Estados endividavam-se muito sobretudo para financiar a guerra. No pós-II Grande Guerra a razão principal do endividamento deixou de ser a guerra e passou a ser o Estado-providência. Comparando as componentes da despesa pública do século XIX com as do século XX (após a II Grande Guerra) percebe-se as diferentes origens do endividamento público. Mesmo os Estados Unidos, desde os anos 1970, as despesas da guerra têm diminuído em detrimento das despesas com educação e saúde.
EliminarPor lapso, na última frase escrevi "em detrimento", quando queria, obviamente, dizer "em benefício das despesas com educação e saúde"
EliminarÉ muito interessante a perspetiva de que os países que anteriormente se endividavam para financiar a guerra, atualmente se endividam para financiar o estado-providência. Nunca tinha pensado nisto dessa forma.
EliminarTalvez a promoção do estado providência por exemplo em África fosse finalmente a solução para o contínuos problemas de guerra no continente.
Leio estas suas reflexões sobre o recorrente tema dos conflitos intergeracionais (na realidade há vários conflitos) e as opiniões expressas, e, com o devido respeito, parece-me redutor observar o assunto apenas do ponto de vista dos débitos e créditos que sustentam ou não a viabilidade do Estado Social. Mas reconheço, quem não reconhece?, que este assunto está na ordem do dia e é muito pertinente discuti-lo.
ResponderEliminarHá pouco mais de um ano escrevi isto
http://aliastu.blogspot.pt/2014/03/acerca-do-conflito-intergeracional.html
sobre o assunto.
Não transcrevo aqui por ser demasiado extenso. Se a sua curiosidade for tanta siga o link e faça o favor de discordar!
Obrigado!
Prezado Rui Fonseca,
ResponderEliminarObrigado pela sua sugestão de leitura, que, como sempre, lerei com atenção. Nesta história, tenho mais dúvidas (sobretudo sobre as soluções possíveis) do que certezas. Mas não tenho dúvidas de que há um problema de sustentabilidade do actual sistema, e um novo tipo de conflito geracional (sempre existiram. tem razão, mas eram de outra natureza) é um risco elevado. Ignorar ou desvalorizar os problemas do actual Estado-providência parece-me a pior das atitudes. Se isso acontecer, alguém há-de pagar um preço bastante elevado.