sexta-feira, 1 de maio de 2015

A perigosa ideologia da ideologia técnica

O Prof. João César das Neves é conhecido por, na sua primeira aula aos caloiros, fazer um discurso de enaltecimento da Economia, em que a considera uma ciência melhor que as outras - e, naturalmente, os economistas seres predestinados, melhores que os demais humanos. Talvez por não ter sido sua aluna, eu não reconheço a superioridade da minha ciência (nem de nenhuma outra, na verdade, acho que as comparações não fazem sentido). Mais grave, não esqueço que ela é social (o que para muitos colegas meus parece ser defeito) e não acho que tudo seja Economia. Há uma vida para além dela, que inclui, por exemplo, a Política ou a Filosofia (eu gosto um bocadinho de Filosofia, não sei se já se notou).

Vêm estas palavras a propósito da intenção do PSD de ver a proposta do PS escrutinada pela UTAO. Para quem não sabe, o T de UTAO significa técnica. Para adjectivar esta ideia de peregrina basta-me referir que mesmo as análises técnicas têm nos seus pressupostos hipóteses simplificadoras que variam. Se forem procurar à Comissão Europeia e ao BCE estudos sobre o impacto de reformas estruturais, vão ver que eles usam modelos distintos, que produzem, pois, resultados distintos (ainda que qualitativamente semelhantes). Ou seja, mesmo assumindo que as análises técnicas são absolutamente assépticas do ponto de vista ideológico - assumpção bastante forte, diga-se -, há espaço para diferentes resultados.

Mas este nem é o meu ponto. O que me incomoda nesta proposta é a noção de que a ideologia perdeu o seu lugar. Ter conteúdo ideológico passou a ser uma mácula, idêntica à que tem quem é político (que é coisa diferente de ser-se politiqueiro). Querer sujeitar um documento eminentemente político a uma análise técnica, não só é absurdo, como é, sobretudo, perigoso: é uma vontade que encerra a noção de que há posições melhores que outras, determinadas por um qualquer filtro de Hodrick-Prescott. Só num mundo em que se acha existir a opinião tecnicamente certa e as erradas, é possível que a UTAO ou o CFP escrutinem um programa eleitoral. E, simetricamente, quem é técnico não pode ter opinião. Uma diferente, pelo menos.

4 comentários:

  1. Muito bom. Eu até diria mais: os cursos de economia deviam ter uma cadeira obrigatória de filosofia. Afinal de contas, Adam Smith era filósofo e muitos dos pressupostos filosóficos da época estão na base da economia: só existem indivíduos, homogéneos, dotados de uma misteriosa racionalidade, indiferentes à sociedade e, no entanto, a sociedade existe. Marx substitui os indivíduos pelas classes e o "equilíbrio" pela luta de classes. Teve esse mérito, desgraçadamente nunca conseguiu definir «classes», embora elas também existam, não são é só fundamentalmente duas, são milhentas. Mas, como é habitual nos comentários, já me estou a divagar e a afastar.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caramba, assim eu não terminaria o curso, Zé Carlos. Eu não dou uma para a caixa a filosofia. É por isso que eu gosto de aqui estar: vocês ensinam-me muitas coisas...

      Eliminar
    2. Filosofia é "amor à sabedoria" e, nesse sentido, és uma boa filósofa.

      Eliminar
    3. Gracias, dear sir--you are too kind!

      Eliminar

Não são permitidos comentários anónimos.