O relatório “Uma
década para Portugal” encomendado pelo PS a 12 economistas merece ser lido. À excepção
da descida da TSU para os trabalhadores, o relatório tem bastante consistência
interna. É um contributo sério para o debate eleitoral e contribui para a
elevação do nível do debate. Estão de parabéns os seus autores, bem como quem
encomendou o trabalho.
Na minha opinião, as
primeiras reacções ao relatório, dizendo que nunca o PS tinha estado tão longe
do PSD ― por
exemplo, Pedro Santos Guerreiro no Expresso ― estão simplesmente erradas. Bem pelo contrário, nunca o PS se
tinha demarcado tão claramente dos partidos à sua esquerda e nunca um
entendimento com um dos partidos à sua direita foi tão fácil. Nos pontos
fulcrais, as políticas defendidas neste documento podiam perfeitamente ser
subscritas por um grupo de trabalho do PSD. Onde os dois partidos claramente se
distinguem é no optimismo com que encaram o futuro. Abordarei essa questão no
último ponto destas notas.
Parte do documento são
generalidades com que qualquer pessoa concorda, como pedir uma melhor ligação
entre universidade e empresas, justiça mais célere e transparente,
desenvolvimento territorial equilibrado, etc. Onde se nota um pendor mais
socialista, é em alguma preocupação com a justiça social, que transparece em
todo o documento, e num papel mais activo do Estado na direcção da
Economia.
Mercado de Trabalho
Salário mínimo
É estranho que num
documento do PS para a década não se fale em aumentos do salário mínimo. Ainda
há poucos meses, António Costa defendia
que o Salário Mínimo Nacional deveria ter aumentado para mais de 520€ e não
para 505€.
Em vez de propor aumentos
do salário mínimo, o PS propõe compensar os trabalhadores de baixos rendimentos
com um complemento salarial. Na prática, funciona como um imposto negativo.
Nada tenho contra esta medida, bem pelo contrário. Pelo
menos, desde Março de 2008 que a defendo publicamente. No entanto,
sempre que defendi isto, fui confrontado com as críticas de que isto era uma
política de direita e que se estariam a subsidiar empresas especializadas em
mão-de-obra barata. E, claro, lembravam logo que Milton Friedman, esse papão,
defendia essa política. Em minha defesa, alegava que quer o filósofo John Rawls
quer o prémio Nobel da Economia Edmund Phelps, ambos de esquerda, defendiam uma
política semelhante.
Apenas
posso dizer ao PS, bem-vindos. Finalmente, deixaram-se de moralismos bacocos e
começaram a perceber que a justiça social deve ser perseguida da forma mais
eficiente possível. Uma combinação eficaz de um salário mínimo moderado com um
imposto negativo é a melhor forma de apoiar os trabalhadores menos
qualificados. Uma política deste tipo facilita o emprego dos trabalhadores não
qualificados. Reforça a coesão nacional, aumentando as transferências das
regiões mais ricas para as mais deprimidas.
Contrato
único
Uma
proposta que Mário Centeno defende há vários anos é a do contrato único. A ideia é a de
que em vez de se ter duas categorias de trabalhadores ― uns com contrato a
tempo indeterminado, com muitos direitos, e outros com contratos a prazo, que
poucos direitos oferecem ― passe a haver um contrato único que seja intermédio,
evitando a divisão de trabalhadores em duas classes. Pretende-se evitar a
precariedade dos contratos a prazo sem aumentar a rigidez global do mercado de
trabalho.
O princípio não está
errado, mas a sua aplicação terá resultados que são a priori difíceis
de antever, que podem ter efeitos opostos ao desejado, e sobre os quais o
documento é omisso. Explico. Hoje em dia, há também uma terceira categoria de
trabalhadores que não tem nenhuns direitos laborais: a categoria dos falsos
recibos verdes. Ao se eliminar os contratos a prazo, não há qualquer garantia
de que as empresas não passem a recorrer ainda mais intensivamente aos falsos
recibos verdes. Se tal acontecer, em vez de se reduzir, aumenta-se a
precariedade, e a lei prejudica aqueles que pretende defender.
Segurança Social ― Redução da TSU paga pelas empresas
Neste ponto, o documento
PS recupera uma proposta
originariamente feita pelo Bloco de Esquerda e rejeitada pelo governo socialista de Sócrates. Com o objectivo
explícito de promover o emprego, o BE propôs uma descida da TSU paga pelas
empresas em 3,5 pontos percentuais que seria financiada por um imposto sobre os
lucros e um imposto sobre as grandes fortunas.
O princípio geral da
medida está correcto. A fiscalidade portuguesa prejudica o trabalhador. Ao se
fazer incidir impostos e taxas sobre o valor dos salários, está-se a aumentar
directamente os custos de contratar mais trabalhadores. Transferir parte das
receitas da Segurança Social da TSU para outro tipo de impostos permite reduzir
os custos laborais, beneficiando principalmente as empresas que têm mais
trabalhadores e que pagam melhor. Ou seja, está-se a dar os incentivos
correctos numa altura em que o desemprego atinge quase um milhão de pessoas. Os
governos cavaquistas inauguraram a mania de subsidiar os grandes investimentos
que as empresas faziam em maquinaria e tecnologia que permitiam cortar o número
de trabalhadores. Está na altura de fazer o contrário.
Neste documento, propõe-se
uma redução da contribuição do empregador para a Segurança Social em 4 pontos
percentuais. A quebra de receitas é compensada por um imposto sucessório sobre
as grandes fortunas ― que é um imposto que tem poucas contra-indicações
económicas e é socialmente justo ―, um aumento da TSU paga pelas empresas que
têm maior rotação de trabalhadores (pretendendo-se assim incentivar relações
laborais estáveis, um sinal de sentido correcto) e por um aumento do IRC, em
relação ao plano que está consensualizado com o PSD.
Estas propostas vão no
sentido certo. Há no entanto um risco. As receitas da TSU são bastante certas.
Neste documento, trocam-se essas receitas por impostos com efeitos difíceis de
estimar (heranças) e bastante voláteis (IRC). Faria sentido incluir o IVA nesta
equação por, pelo menos, dois motivos. Primeiro, porque também é pago pelos
actuais reformados, que assim também seriam chamados a contribuir para a
sustentabilidade da SS. Segundo, o IVA incide sobre todos os bens, incluindo os
importados, enquanto os outros impostos apenas incidem sobre empresas (e
pessoas) que produzem em Portugal. Reduzir a TSU por contrapartida do IVA é uma
boa política de apoio à competitividade externa. Seria a tão famosa
desvalorização fiscal.
Segurança Social ― Redução da TSU paga pelos trabalhadores
O relatório dos 12 propõe
uma descida, gradual, da TSU paga pelos trabalhadores de 4 pontos percentuais.
A redução da TSU é financiada pelos próprios trabalhadores na forma de pensões
futuras mais baixas. Neste ponto, o documento é internamente inconsistente,
como se explicará dois parágrafos abaixo.
Diz-se que esta é uma
medida temporária, que tem como único objectivo aliviar os trabalhadores com
restrições de liquidez (desculpem o jargão técnico). Mas, se assim é, não se
percebe por que motivo obrigatória e não estritamente voluntária. Argumenta o
documento que “aqueles que não estejam restritos de liquidez podem aplicar a
redução da taxa contributiva da forma que entendam mais profícua.” Esta é
exactamente a argumentação de quem defende a privatização da Segurança Social.
É estranho lê-la num documento socialista. Até porque fazer a transição da
Segurança Social de um sistema de repartição para um sistema de capitalização
não implica, de forma alguma, passar de um sistema público para um sistema
privado. É estranho ver o PS a abrir essa porta.
Há algo que não é
explicitamente dito no documento, mas que é óbvio. Se se baixam as receitas da
SS por contrapartida de uma redução de despesas que ocorrerá daqui a 20 anos,
então, pelo caminho, é necessário aumentar a dívida pública para financiar as
actuais despesas. E é aqui que vem a inconsistência do documento. Diz o
documento que esta medida “não tem impacto direto nas metas orçamentais, se
enquadrada como reforma estrutural ao abrigo do Tratado Orçamental.”
Naturalmente, uma medida temporária nunca poderá ser aceite pela Comissão
Europeia como uma reforma estrutural.
Se, de facto, o PS está a
pensar em reforma estrutural, então está a falar em cortes permanentes
(estruturais) na TSU paga pelos trabalhadores. E está a propô-lo à custa de uma
redução das suas pensões. Isto mais não é do que uma privatização parcial da
Segurança Social. É um assunto demasiado importante para ser discutido no meio
de um suposto alívio da “restrição de liquidez”.
Cenários macroeconómicos: uma aposta arriscada para o equilíbrio externo
Muita gente tem criticado
este documento por ter cenários macroeconómicos demasiado rosa. As principais
diferenças entre o que é defendido pelo governo PSD/CDS e o que é proposto pelo
PS são resultado disto. Basicamente, o PS propõe um alívio das sobrecargas
fiscais e uma reposição dos salários na Função Pública (bem como o descongelamento
das carreiras) mais rápidos do que o actual governo.
Este tipo de cenários me
parece bastante irrelevante. Ninguém consegue prever o futuro (nem o passado,
quanto mais o futuro). Parece-me óbvio que se o crescimento for mais lento do
que o previsto, um governo PS desacelerará estas reposições. Se for mais
rápido, um governo PSD/CDS acelerará o seu calendário. Portanto, as diferenças
são meramente de discurso. Na prática, implementarão políticas semelhantes.
Há, no entanto, um aspecto
que me parece importante realçar e que é o maior risco que este programa do PS
enfrenta. Existem várias medidas de estímulo da procura que poderão levar a
fortes aumentos das importações. No cenário central do PS, isso não é muito
grave porque prevêem uma forte subida das exportações. Essa previsão é
suportada por projecções publicadas pela Comissão Europeia. No entanto, estas
projecções, feitas em Outubro de 2014, parecem ser demasiado optimistas. O que
se tem passado desde então sugere que deviam ser revistas em baixa.
Ou seja, o principal risco
das políticas propostas é o de disparem o défice externo, pecha estrutural da
nossa economia. Gostaria de ver mais prudência e menos voluntarismo neste
aspecto.
Muito obrigada!
ResponderEliminar