terça-feira, 12 de maio de 2015

Notas sobre o Relatório da Década PS

Só para ficar arquivado como um documento único, compilo nesta entrada todas as minhas entradas com a discussão do Relatório da Década PS.


O relatório “Uma década para Portugal” encomendado pelo PS a 12 economistas merece ser lido. À excepção da descida da TSU para os trabalhadores, o relatório tem bastante consistência interna. É um contributo sério para o debate eleitoral e contribui para a elevação do nível do debate. Estão de parabéns os seus autores, bem como quem encomendou o trabalho.
Na minha opinião, as primeiras reacções ao relatório, dizendo que nunca o PS tinha estado tão longe do PSD ― por exemplo, Pedro Santos Guerreiro no Expresso ― estão simplesmente erradas. Bem pelo contrário, nunca o PS se tinha demarcado tão claramente dos partidos à sua esquerda e nunca um entendimento com um dos partidos à sua direita foi tão fácil. Nos pontos fulcrais, as políticas defendidas neste documento podiam perfeitamente ser subscritas por um grupo de trabalho do PSD. Onde os dois partidos claramente se distinguem é no optimismo com que encaram o futuro. Abordarei essa questão no último ponto destas notas.
Parte do documento são generalidades com que qualquer pessoa concorda, como pedir uma melhor ligação entre universidade e empresas, justiça mais célere e transparente, desenvolvimento territorial equilibrado, etc. Onde se nota um pendor mais socialista, é em alguma preocupação com a justiça social, que transparece em todo o documento, e num papel mais activo do Estado na direcção da Economia. 

Mercado de Trabalho

Salário mínimo
É estranho que num documento do PS para a década não se fale em aumentos do salário mínimo. Ainda há poucos meses, António Costa defendia que o Salário Mínimo Nacional deveria ter aumentado para mais de 520€ e não para 505€.
Em vez de propor aumentos do salário mínimo, o PS propõe compensar os trabalhadores de baixos rendimentos com um complemento salarial. Na prática, funciona como um imposto negativo. Nada tenho contra esta medida, bem pelo contrário. Pelo menos, desde Março de 2008 que a defendo publicamente. No entanto, sempre que defendi isto, fui confrontado com as críticas de que isto era uma política de direita e que se estariam a subsidiar empresas especializadas em mão-de-obra barata. E, claro, lembravam logo que Milton Friedman, esse papão, defendia essa política. Em minha defesa, alegava que quer o filósofo John Rawls quer o prémio Nobel da Economia Edmund Phelps, ambos de esquerda, defendiam uma política semelhante.
Apenas posso dizer ao PS, bem-vindos. Finalmente, deixaram-se de moralismos bacocos e começaram a perceber que a justiça social deve ser perseguida da forma mais eficiente possível. Uma combinação eficaz de um salário mínimo moderado com um imposto negativo é a melhor forma de apoiar os trabalhadores menos qualificados. Uma política deste tipo facilita o emprego dos trabalhadores não qualificados. Reforça a coesão nacional, aumentando as transferências das regiões mais ricas para as mais deprimidas.
Contrato único
Uma proposta que Mário Centeno defende há vários anos é a do contrato único. A ideia é a de que em vez de se ter duas categorias de trabalhadores ― uns com contrato a tempo indeterminado, com muitos direitos, e outros com contratos a prazo, que poucos direitos oferecem ― passe a haver um contrato único que seja intermédio, evitando a divisão de trabalhadores em duas classes. Pretende-se evitar a precariedade dos contratos a prazo sem aumentar a rigidez global do mercado de trabalho.
O princípio não está errado, mas a sua aplicação terá resultados que são a priori difíceis de antever, que podem ter efeitos opostos ao desejado, e sobre os quais o documento é omisso. Explico. Hoje em dia, há também uma terceira categoria de trabalhadores que não tem nenhuns direitos laborais: a categoria dos falsos recibos verdes. Ao se eliminar os contratos a prazo, não há qualquer garantia de que as empresas não passem a recorrer ainda mais intensivamente aos falsos recibos verdes. Se tal acontecer, em vez de se reduzir, aumenta-se a precariedade, e a lei prejudica aqueles que pretende defender.

Segurança Social ― Redução da TSU paga pelas empresas

Neste ponto, o documento PS recupera uma proposta originariamente feita pelo Bloco de Esquerda e rejeitada pelo governo socialista de Sócrates. Com o objectivo explícito de promover o emprego, o BE propôs uma descida da TSU paga pelas empresas em 3,5 pontos percentuais que seria financiada por um imposto sobre os lucros e um imposto sobre as grandes fortunas.
O princípio geral da medida está correcto. A fiscalidade portuguesa prejudica o trabalhador. Ao se fazer incidir impostos e taxas sobre o valor dos salários, está-se a aumentar directamente os custos de contratar mais trabalhadores. Transferir parte das receitas da Segurança Social da TSU para outro tipo de impostos permite reduzir os custos laborais, beneficiando principalmente as empresas que têm mais trabalhadores e que pagam melhor. Ou seja, está-se a dar os incentivos correctos numa altura em que o desemprego atinge quase um milhão de pessoas. Os governos cavaquistas inauguraram a mania de subsidiar os grandes investimentos que as empresas faziam em maquinaria e tecnologia que permitiam cortar o número de trabalhadores. Está na altura de fazer o contrário.
Neste documento, propõe-se uma redução da contribuição do empregador para a Segurança Social em 4 pontos percentuais. A quebra de receitas é compensada por um imposto sucessório sobre as grandes fortunas ― que é um imposto que tem poucas contra-indicações económicas e é socialmente justo ―, um aumento da TSU paga pelas empresas que têm maior rotação de trabalhadores (pretendendo-se assim incentivar relações laborais estáveis, um sinal de sentido correcto) e por um aumento do IRC, em relação ao plano que está consensualizado com o PSD.
Estas propostas vão no sentido certo. Há no entanto um risco. As receitas da TSU são bastante certas. Neste documento, trocam-se essas receitas por impostos com efeitos difíceis de estimar (heranças) e bastante voláteis (IRC). Faria sentido incluir o IVA nesta equação por, pelo menos, dois motivos. Primeiro, porque também é pago pelos actuais reformados, que assim também seriam chamados a contribuir para a sustentabilidade da SS. Segundo, o IVA incide sobre todos os bens, incluindo os importados, enquanto os outros impostos apenas incidem sobre empresas (e pessoas) que produzem em Portugal. Reduzir a TSU por contrapartida do IVA é uma boa política de apoio à competitividade externa. Seria a tão famosa desvalorização fiscal.

Segurança Social ― Redução da TSU paga pelos trabalhadores

O relatório dos 12 propõe uma descida, gradual, da TSU paga pelos trabalhadores de 4 pontos percentuais. A redução da TSU é financiada pelos próprios trabalhadores na forma de pensões futuras mais baixas. Neste ponto, o documento é internamente inconsistente, como se explicará dois parágrafos abaixo.
Diz-se que esta é uma medida temporária, que tem como único objectivo aliviar os trabalhadores com restrições de liquidez (desculpem o jargão técnico). Mas, se assim é, não se percebe por que motivo obrigatória e não estritamente voluntária. Argumenta o documento que “aqueles que não estejam restritos de liquidez podem aplicar a redução da taxa contributiva da forma que entendam mais profícua.” Esta é exactamente a argumentação de quem defende a privatização da Segurança Social. É estranho lê-la num documento socialista. Até porque fazer a transição da Segurança Social de um sistema de repartição para um sistema de capitalização não implica, de forma alguma, passar de um sistema público para um sistema privado. É estranho ver o PS a abrir essa porta.
Há algo que não é explicitamente dito no documento, mas que é óbvio. Se se baixam as receitas da SS por contrapartida de uma redução de despesas que ocorrerá daqui a 20 anos, então, pelo caminho, é necessário aumentar a dívida pública para financiar as actuais despesas. E é aqui que vem a inconsistência do documento. Diz o documento que esta medida “não tem impacto direto nas metas orçamentais, se enquadrada como reforma estrutural ao abrigo do Tratado Orçamental.” Naturalmente, uma medida temporária nunca poderá ser aceite pela Comissão Europeia como uma reforma estrutural.
Se, de facto, o PS está a pensar em reforma estrutural, então está a falar em cortes permanentes (estruturais) na TSU paga pelos trabalhadores. E está a propô-lo à custa de uma redução das suas pensões. Isto mais não é do que uma privatização parcial da Segurança Social. É um assunto demasiado importante para ser discutido no meio de um suposto alívio da “restrição de liquidez”.

Cenários macroeconómicos: uma aposta arriscada para o equilíbrio externo

Muita gente tem criticado este documento por ter cenários macroeconómicos demasiado rosa. As principais diferenças entre o que é defendido pelo governo PSD/CDS e o que é proposto pelo PS são resultado disto. Basicamente, o PS propõe um alívio das sobrecargas fiscais e uma reposição dos salários na Função Pública (bem como o descongelamento das carreiras) mais rápidos do que o actual governo.
Este tipo de cenários me parece bastante irrelevante. Ninguém consegue prever o futuro (nem o passado, quanto mais o futuro). Parece-me óbvio que se o crescimento for mais lento do que o previsto, um governo PS desacelerará estas reposições. Se for mais rápido, um governo PSD/CDS acelerará o seu calendário. Portanto, as diferenças são meramente de discurso. Na prática, implementarão políticas semelhantes.
Há, no entanto, um aspecto que me parece importante realçar e que é o maior risco que este programa do PS enfrenta. Existem várias medidas de estímulo da procura que poderão levar a fortes aumentos das importações. No cenário central do PS, isso não é muito grave porque prevêem uma forte subida das exportações. Essa previsão é suportada por projecções publicadas pela Comissão Europeia. No entanto, estas projecções, feitas em Outubro de 2014, parecem ser demasiado optimistas. O que se tem passado desde então sugere que deviam ser revistas em baixa.

Ou seja, o principal risco das políticas propostas é o de disparem o défice externo, pecha estrutural da nossa economia. Gostaria de ver mais prudência e menos voluntarismo neste aspecto.

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