quarta-feira, 20 de maio de 2015

Gays de Portugal, estou aqui!

Tenho andado a acompanhar a discussão dos dadores de sangue e sinto, acima de tudo, uma grande incredulidade pelo tipo de argumentos que se usam. Como tenho andado com a cabeça meio-ocupada com outras questões que NOS dizem respeito (não resisti ao trocadilho), nem pensei em escrever sobre isso, mas ontem o NAJ, o nosso guru de sociologia, encostou-me à parede e pediu a minha opinião. Eu acho que, neste caso, se discute o sexo dos anjos e proferem-se muitas "certezas" que são extremamente incertas. E eu fico com medo, acima de tudo, tenho medo que pessoas em sítios de responsabilidade tão grande digam as coisas que dizem.

Quando se faz um design de um instrumento de inquérito, há certas coisas que devem ser tomadas em conta e que são:

  • a definição da população de interesse
  • a definição dos grupos de interesse dentro da população
  • a forma como vamos retirar a amostra da população
  • a forma como vamos assegurar que os grupos de interesse da amostra sejam representativos da presença dos grupos de interesse na população
  • a possibilidade para erros na selecção da amostra (quadro de amostragem), nomeadamente: indivíduos que estão ausentes, mas que deviam ser incluídos; indivíduos que aparecem mais do que uma vez; indivíduos estranhos, isto é, que não deviam fazer parte da amostra; e indivíduos que aparecem em grupos ou clusters.

Pensando nestas coisas e na forma como se tem discutido o problema dos dadores de sangue, há várias perguntas que aparecem na minha cabeça. A primeira óbvia é que quem doa sangue auto-selecciona-se, logo as estatísticas que se tem do inquérito português não são muito fiáveis. Estar a inferir do inquérito para a população em geral é estatisticamente incorrecto. Ou seja, esses números que andam por aí a apregoar aos sete ventos têm pouca credibilidade.

Como se tem insistido em considerar dois grupos de dadores: os homossexuais e os heterossexuais, outra pergunta que aparece na minha cabeça é o que é uma pessoa homossexual. Se um extra-terrestre estivesse a passar férias em Portugal, ficaria com a impressão que um homossexual é uma pessoa que se identifica como homossexual quando dá sangue. Então quer dizer que não há homossexuais que dão sangue, mas que quando respondem ao inquérito dizem que são heterossexuais? Qual a prevalência desse caso? Eu aposto que há homossexuais no grupo de heterossexuais. E será que, ao proibir-se que os homossexuais dêem sangue, não estamos a criar um incentivo perverso para mais pessoas homossexuais manterem a sua preferência sexual secreta e continuarem a dar sangue, identificando-se como heterossexual?

Quando me dizem que a prevalência de HIV é maior em homossexuais eu não fico espantada por duas razões óbvias:

  • Este grupo de pessoas, por ser muito perseguido historicamente, durante muito tempo teve comportamentos sexuais em que tinham vários parceiros sexuais em vez de desenvolverem relações estáveis, as relações estáveis são mais comuns em heterossexuais. A natureza do "acasalamento" é responsável pela disseminação mais rápida de HIV em África do que na Europa e na América do Norte. Os africanos têm redes de parceiros sexuais; já nos outros sítios, normalmente têm-se parceiros sexuais de forma linear: tem-se sexo com a pessoa com quem mantemos uma relação amorosa, depois as coisas azedam e procuramos outra. Mas agora o casamento gay é quase uma realidade, logo deve aumentar o número de relações estáveis entre gays.
  • Devido a progresso tecnológico, os seropositivos conseguem sobreviver mais tempo e muitos nem chegam a desenvolver o SIDA. Muitas das pessoas que foram contaminadas no passado eram homossexuais.

Mas isto leva-me a outro ponto, a questão dos dados históricos serem representativos da situação actual ou poderem ser usados para ter confiança no futuro. Ainda ninguém me apresentou provas de que o HIV actualmente se espalha mais rapidamente entre homossexuais do que entre heterossexuais. Durante as minhas conversas com o Nuno, houve duas coisas que ele comentou que eu achei pertinentes:

  1. Uma é que as pessoas de idade mais avançada estão a ter mais sexo desprotegido com muitos mais parceiros (sexo em rede) e as doenças sexualmente transmissíveis estão a aumentar nesse grupo. Isso já eu sabia que acontecia nos EUA. Pelo que eu leio, os mais velhos são também pessoas que normalmente são mais altruístas e isso leva-me a suspeitar que provavelmente doem mais sangue.
  2. A geração actual de jovens vê o sexo como uma actividade recreativa, ou seja, isto leva-me a crer que o sexo nessa camada etária é em rede e não em forma linear. Vocês não ouviram a letra da canção "Às Vezes", dos D.A.M.A.?
    Eu não digo a ninguém, que me queres e preferes
    Aos outros que tu tens
    [...]
    Eu quero e faço por isso e tu queres um compromisso
    E eu sou mais de improviso e tu só queres ficar bem
    E ficas doida comigo porque tens noção do perigo
    Mas eu não se se consigo dar-te tudo o que tenho
    Sabes que te quero embora seja às vezes
    Tento ser sincero, só que, tu não me entendes
    Não tenho culpa, mas não sinto o que tu sentes
    Hoje ficas cá em casa, uma vez não são vezes

Ou seja, se as pessoas responsáveis pelo Instituto de Sangue Português pensam que ao eliminar os homossexuais controlam os custos e o risco, eu sugiro que repensem a natureza do problema.

P.S. E agora o título deste post: Eu tenho vários amigos homossexuais nos EUA--os gays gostam muito de mim. Eu até tenho um amigo que nasceu no Azerbaijão e outro que é dinamarquês, que são gay. Mas eu só conheço pessoalmente uma mulher lésbica em Portugal e, há 25 anos, um dos fulanos no meu círculo de amigos dava a impressão que era gay, mas não se assumia. Agora uma amiga minha disse-me que ele já é gay assumido. De resto, os gays portugueses ainda não me encontraram ou eu ainda não os encontrei, o que eu acho muito estranho porque eu conheço muita gente em Portugal.

Adenda: O guru da sociologia decidiu encostar-me à parede outra vez. Pois, eu não conhecer gays portugueses em abundância não é indicativo de nada--quer dizer, é indicativo que nem o NAJ, especialista em humor, apanha 100% do meu sentido de humor. Mas não deixa de ser curioso que os gays portugueses andem tão escondidos no dia-a-dia; eu nem os encontro no Facebook. Há uns anónimos no Tumblr, que eu encontro de vez em quando, mas por serem anónimos estão escondidos. Isto leva-me a ser muito reticente acerca de coisas onde é pedido que as pessoas se auto-identifiquem como gay em Portugal. Ah, diz o NAJ que o meu texto perde com a minha piada--este gajo não larga o osso. Irra...

13 comentários:

  1. Cara Rita,

    Caiu no mesmo erro que caiu a maioria das pessoas. O inquérito para dadores de sangue não pergunta orientação sexual, mas sim actividade sexual. A pergunta é se, sendo homem, teve relações com outro homem.

    Para pegar em casos extremos, que são maus exemplos, mas balizam bem a situação, um homem que tenha orientação homossexual mas que não seja activo sexualmente PODE dar sangue. Da mesma forma que um homem heterossexual, mas que por algum motivo tenha tido relações com outro homem (vamos imaginar o caso mais escabroso de uma violação), NÃO pode dar sangue.

    Mas à outros - e para sairmos da questão sexual: um bodybuilder (para o exemplo mais típico) que se tenha auto-injectado NÃO pode dar sangue - não precisa de ser drogado; alguém que tenha epilepsia, não pode dar sangue; se tiver recibo uma transfusão pós-1980, não pode dar sangue, etc. A questão aqui são grupos de riscos, não tem nada, ZERO, a ver com orientação sexual. Se fosse para ser homofóbico, então não permitiam que mulheres lésbicas dessem sangue (e não há qualquer impedimento).

    Quanto aos dados do HIV: http://ecdc.europa.eu/en/healthtopics/aids/Pages/infographics.aspx

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    1. Carlos, é irrelevante o que o inquérito pergunta. O facto de as pessoas se auto-seleccionarem enviesa os resultados. Para além disso, nem toda a gente responde com a verdade a este tipo de perguntas.

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    2. Ah, esqueci-me de responder à última parte. Fica para outro post...

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  2. Não me parece que isso afete muito os dados da questão (além do ponto que ainda não percebi muito bem se a questão é "atividade nos últimos X meses/anos" - que penso que era o que dizia antigamente quanda a ficha de inquérito do IPS era do conhecimento público - ou "atividade alguma vez na vida" - que é o que o manual do IPS atualmente dá a entender); tal como haverá muitos homossexuais que dizem ser heterossexuais, também haverá muitos homens que tiveram sexo com homens que dizem que nunca tiveram sexo com homens.

    Uma coisa que me leva a suspeitar da veracidade do que muitos candidatos a dadores dizem - as campanhas de quase coação psicológica que por vezes se fazem para incentivar as pessoas a dar sangue (como num local de trabalho alguém ir ser operado e fazer-se campanhas "deviamos ir todos dar sangue que ele vai precisar"); provavelmente haverá pessoas que não podem dar sanguem mas irão fazé-lo porque não querem parecer egoístas e também não querem revelar ao mundo que são homossexuais/prostitut@s/clientes de prostitut@s/nos últimos 6 meses tiveram sexo não só com a esposa mas também com a amante/etc.; talvez o IPS devesse incluir nos critérios de exclusão uma coisa socialmente aceitável e que até pode ser na verdade inofensiva, só para alguém que não deva dar sangue se possa desculpar perante amigos e conhecidos (teria que ser algo demograficamente muito minoritário, para não excluir muitos casos reais, e que não implicasse alguém ter que entrar numa grande teia de mentiras).

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    1. Miguel, o manual e a resposta que deram à jornalista que os inquiriu sobre isso é claro. Quanto a homens que fizeram sexo com homens, a exclusão é definitiva.
      Quanto ao que falas das campanhas, tens toda a razão. O ideal neste processo era ser todo voluntário, para que a auto-selecção faça o seu trabalho. Esse tipo de campanhas põe em causa essa primeira seriação.

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    2. Quando falo em jornalista, refiro-me a esta reportagem: https://www.dropbox.com/s/ieuley30dwuhx1t/DN_Sa.pdf

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    3. A exclusão é definitiva, apesar de ter havido há uns tempos alguma abertura para a mesma ser limitada temporalmente (com um período superior à troca de parceiro sexual nas relações heterossexuais, mas não definitiva).

      Quanto às mentiras piedosas, há muitas, começando pelo "tomei uma aspirina e esqueci-me" (sim, se tiver tomado uma aspirina não pode dar sangue por um período de 15 dias).

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  3. Eu não percebo uma coisa.
    Quem vai dar sangue, fá-lo por altruismo: vai dar sangue porque pode haver quem esteja numa situação complicada que precise dele para sobreviver.

    Decide então mentir no inquérito: é gay mas diz que não, teve sexo desprotegido mas diz que não, frequentou prostitutas(os) mas diz que não. Isso contraria o altruismo, que à partida é o impulso para se ir dar sangue.

    Isto, para mim, não faz qualquer sentido.
    Nem entendo as pessoas que colocam esta questão no nível do "direito dos gays a darem sangue". A sério? É um direito deles, ou de quem quer que seja?
    E eu que pensava que era altruismo.

    Não percebo mesmo nada de nada.

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    1. Se a pessoa pensa que o seu sangue é seguro, pode pensar que mentir no questionário não terá consequências de maior.

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    2. Ok, mas para esses casos depois há os testes que se fazem ao sangue - e que são sempre feitos. Há sempre quem tenha problemas e não saiba.
      O questionário serve apenas para eliminar à partida aqueles que muito provavelmente não servirão.

      É tão só uma medida de racionalização de recursos, penso eu, mas a "malta" quer fazer disso um cavalo de batalha.

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    3. Quando quem tem sexo heterossexual com seropositivos não é automaticamente excluído enquanto que um homem que tem sexo com outro homem é automaticamente excluído é normal que se sintam ofendidos e façam disto um cavalo de batalha.

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  4. Se calhar é normal que fiquem ofendidos, se calhar é normal que essas regras sejam assim, e se calhar tudo motivos diferentes.

    Se há dados estatísticos (e eu não sei se existem) que demonstrem que um caso é problemático e o outro não, então é normal que as exclusões sejam assim.
    Quem está habituado a ser discriminado pela orientação sexual, é normal que olha para isso e pense que está novamente a ser discriminado.
    Pode ser apenas um caso de falta de informação e/ou problemas de comunicação.

    Gostaria que tivesse havido logo um esclarecimento quanto a isso. Se houve, passou-me ao lado.
    De qualquer forma, tenho dificuldades em pensar que é um problema gravíssimo.
    Porque mais que o direito dos gays a dar sangue, está em causa a possibilidade de quem precisa ter acesso ao mesmo. E para isso, não me parece coisa demasiado importante.

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  5. Eu sou gay, gosto muito da Rita e já a tinha procurado no Facebook mas não encontrei...

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