12. Vinha ruminando
na questão desde que, na tarde de um domingo quente, assistira ao assassínio de
Bartolomeu Beltrão. Era este Bartolomeu figura bem conhecida de cafés e jogos
de cartas, que acompanhava de impropérios vernáculos e cuspidelas para o chão.
Reinou deste modo dez anos, até ao domingo fatal em que, aos gritos de
batoteiro e insinuações nada veladas acerca da virtude da mãe, lhe espetaram na
órbita do olho esquerdo um picador de gelo deixado com negligência sobre o balcão.
Também ali pegara a moda da caipirinha, só que adaptada ao bagaço. Era o
assassino um rival à altura de Bartolomeu, e não se deixou intimidar pelo tufo
de pêlo farpado que lhe saía da camisa como arame. Nem pela tatuagem de uma
serpente rodeando-lhe o pescoço. Avançara sobre o bruto hesitando nada. Sem
tremer da mão, certeiro como um Guilherme Tell, mas sem arco. Não foi
instantânea a morte de Bartolomeu. Agarrado ao cabo do picador de gelo, uivou
aos tombos pela sala, arrastando cadeiras e derrubando mesas. Quem tentou
ajudá-lo levou murros e pontapés sobre-humanos, pois que às vascas da morte a
vontade de sobreviver multiplica as forças. Foi também difícil agarrar o
assassino, posto que perceber que se vai perder a liberdade do mesmo modo
aquece as paixões para lá do ponto de fervura. Quem de fora ouviu gritos e uivos
correu para o estabelecimento, e foram tantos a puxar o homicida, agora que lhe
não enchiam as mãos quaisquer objectos cortantes ou agudos, que as roupas deste
quase não resistiram inteiras. Não se meteu na descomposta multidão aguada
aquele inicialmente apresentado que, desde o caso violento, não pudera evitar
ruminar nele. Por vezes, um passo acima das multidões, há espectadores
reflexivos. A este não lhe custara o aparato grotesco. E não meditava sobre
esta nossa espécie, para a qual é tão fácil aniquilar o semelhante. Servem-nos
os pretextos mais frívolos, jogos de cartas ou desrespeito pelas regras da
prioridade. É tantas vezes pouco importante o que nos basta para mudar um amigo
em cadáver. O que sói conduzir-nos a conclusões lapidares como esta, por trás
de cada sorriso amigável espreita um esgar homicida. Não foram deste teor as
ruminações suscitadas. Mais do que moralista era esteta este espectador
pensativo. Doía-lhe mais o como se fazia do que o que era feito. Escolheu um
dia de aniversário e uma vítima delicada. Abriu a porta e disse, com sua
licença. Se for preciso matar alguém, não custa nada ser bem educado.
Bom dia, sejas muito bem-vinda!
ResponderEliminarObrigada, Luís! Prometo tentar ser holística, mas não garanto.
EliminarO texto é fantástico! De que obra se trata?
ResponderEliminarDe nenhuma. É uma coisa que eu faço de manhã, em vez da ginástica.
Eliminare dás assim saúde aos outros!
EliminarÉs demasiado gentil.
EliminarQuem dera a muito escritor encartado fazer de manhã uma peça tão fabulosa... Dou-lhe os meus parabéns (que pouco valem, porque sou um ninguém) e espero que nos continue a deleitar com textos destes.
ResponderEliminarMuito obrigada! Vou continuar, sim, é a condição central do meu contrato.
EliminarOlha, adorei! Obrigada...
ResponderEliminar:-) Eu é que agradeço !
ResponderEliminarTive de ler várias vezes e, de cada vez, ficava com outro efeito. Ando a ler o João Ricardo Pedro e a tua história é reminiscente do livro dele.
EliminarA reconstrução do aforismo é muito boa e a parte final contém rasgos inimitáveis e documentáveis.
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