terça-feira, 10 de novembro de 2015

Frases famosas 32


32. Não faço ideia. Dito isto, Romeu Infante, quarenta e cinco anos de repartição de finanças, virou as costas à mulher platinada de calças justas. Quarenta e cinco anos de serviço ao estado e nunca tinha virado as costas a nenhum contribuinte
, mesmo aos mais grosseiros, aqueles que achavam que insultá-lo aos gritos lhes aliviava o tributo. Ou que assim pagavam mas não se ficavam. Anos de perdigotos e mau hálito que não respeitavam a fronteira do balcão, nunca tivera a sorte de atender aquela gente por trás de um vidro. Quarenta e cinco anos e não tinha mudado muito a fauna que atendia. No aspecto, talvez. O tiozinho de bordão feito de carvalho que lhe levava um capão ainda vivo e agarrado pelas patas não era assim tão diferente do marmanjo de camisa às riscas, gel no cabelo e óculos de sol na cabeça que lhe exigia rapidez com os papéis. Despache-se lá que tenho uma reunião daqui a dez minutos, são uns calões estes funcionários, vivem à minha custa e não fazem nada. O homem que lhe trazia o galo queria a mesma coisa que o homem que lhe atacava o nariz com a água de colónia, tratamento especial. As estratégias eram diferentes, mas aquele ressentimento pelo questor que lhes levava o fruto do trabalho para pagar os luxos aos eles indefinidos, os eles é que sabem, os eles que vivem à minha custa, não mudou nada. E era a ele, Romeu Infante, quarenta e cinco anos a dar a cara pela coisa pública, que queriam espetar a estaca no coração, ou pendurar pelo pescoço como se devia fazer aos salteadores. Mas nunca se deixara abater. Ao tiozinho fazia ver a severidade da máquina, exasperava o marmanjo dando-lhe a preencher uma dúzia de formulários, muitos deles em triplicado. Trazia um de cada vez, devagarinho. O senhor pôs a cruz fora do quadrado, tem que preencher outro. Dê-me aí o livro de reclamações. Isso é com o meu colega, que está na pausa do almoço. Tinha do seu lado as multas, por isso sabia que ganhava sempre as batalhas diárias com os furibundos que lhe mandavam chamar o chefe. O chefe não está, só da parte da tarde. Quarenta e cinco anos disto e ainda lhe dava satisfação assistir às explosões de fúria dos feudatários. Era um pagode vê-los afastar-se do balcão cheios de exclamações, se o apanho cá fora, isto não se admite, o filho da p******. Quarenta e cinco anos de vitórias e tinha que lhe acontecer isto. Logo no último dia antes da reforma. Ainda tentou resistir. Levou tempo a conceder a derrota. Mas viu-se forçado a depor as armas e bater em retirada. É que a mulher platinada batia de tal maneira as pulseiras sobre o balcão, descrevia com tais detalhes os seus gastos e deduções, fazia tantas perguntas e solicitava tantos esclarecimentos, insistia tanto que ainda não tinha percebido nada e se fazia o favor de repetir, propunha tantas maneiras de dar a volta à lei, discutia com tal fervor o sentido das injunções dos formulários, discordava com tanta veemência da interpretação que lhe era imposta, teimava tanto e queixava-se tanto que a amiga tinha feito isto e aquilo e não via por que é que ela não podia fazer da mesma maneira, que Romeu Infante desistiu de lhe fazer compreender que ao fisco não se pedem explicações e virou-lhe as costas. Que maneira indigna de acabar uma carreira gloriosa.

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