19. Na sua mansarda de herói russo à beira do homicídio, Sergei Gavrilovich Mishkin torce as mãos.
Só pode ser de angústia o gesto acompanhado de passadas frenéticas em volta do tapete, ou do que foi já um tapete, gasto mais pelos anos de uso do que pelos sofrimentos do jovem magro, de cara larga e bexigosa. Porque Sergei Gavrilovich não era o primeiro a ocupar aquela mansarda, nem era o primeiro a estar à beira do homicídio, nem o primeiro a macerar o tapete com passadas em círculo, ainda que pudesse ser o primeiro herói russo de cara larga e bexigosa. E pequeno, ainda por cima. Tanto que muitas vezes o confundiam com um dos rapazes que iam e vinham da escola a pregar rasteiras uns aos outros. Já lhe tinham pregado rasteiras também, e roubado o chapéu, que veio a descobrir, furado, no topo do gradeamento de ferro da estação de comboio, e um dia até um velho lhe tinha dado um soco na cabeça por achar que ele arrastava os pés com demasiada indolência em direcção à aula da manhã. No meu tempo éramos diligentes, dissera o homem enquanto lhe puxava uma orelha. Não andávamos assim, como quem não tem obrigações, continuou. Vais acabar mal, e dar um desgosto aos teus pais, que não andam a trabalhar para ter um filho malandro. Quando chegou a este ponto da descompostura, o velho recebeu uma ovação entusiasmada dos outros transeuntes, e uma mulher de meia-idade puxou o lenço ao nariz, comovida. Ninguém reparara que a cara de Sergei Gavrilovich ostentava um farto bigode, incompatível com a condição de pequeno gazeteiro a caminho da delinquência. É tão forte o cuidado com a juventude, o receio de onde irá parar, ela e o mundo, o medo de que esteja perdida, que pouco interessava à multidão se o descomposto era um rapazito ainda com cara de pêssego, ou um rapagão de olheiras fundas. Chamar à ordem aquele que se ia deixando arrastar pelo vício punha a alma lavada. De tal modo que não podemos levar a mal se muitos dos que assistiam à prédica se sentissem já dispensados de ir à missa nas duas semanas seguintes. Quantas vezes não se ia lá e o padre só sermonizava banalidades, sem elevação nem verdadeiro amor pela humanidade. Agora ali, sim, estava-se perante uma daquelas ocasiões nobres em que o peito se enche de orgulho por se fazer parte do mar da história e da cozinha da sociabilidade. Assim se renovava a confiança nos muros que nos afastam da selvajaria, os muros nos quais cada um é um pequeno tijolo apoiando os outros numa grandiosa ascensão até aos céus. Mais um tijolo no muro.
Só pode ser de angústia o gesto acompanhado de passadas frenéticas em volta do tapete, ou do que foi já um tapete, gasto mais pelos anos de uso do que pelos sofrimentos do jovem magro, de cara larga e bexigosa. Porque Sergei Gavrilovich não era o primeiro a ocupar aquela mansarda, nem era o primeiro a estar à beira do homicídio, nem o primeiro a macerar o tapete com passadas em círculo, ainda que pudesse ser o primeiro herói russo de cara larga e bexigosa. E pequeno, ainda por cima. Tanto que muitas vezes o confundiam com um dos rapazes que iam e vinham da escola a pregar rasteiras uns aos outros. Já lhe tinham pregado rasteiras também, e roubado o chapéu, que veio a descobrir, furado, no topo do gradeamento de ferro da estação de comboio, e um dia até um velho lhe tinha dado um soco na cabeça por achar que ele arrastava os pés com demasiada indolência em direcção à aula da manhã. No meu tempo éramos diligentes, dissera o homem enquanto lhe puxava uma orelha. Não andávamos assim, como quem não tem obrigações, continuou. Vais acabar mal, e dar um desgosto aos teus pais, que não andam a trabalhar para ter um filho malandro. Quando chegou a este ponto da descompostura, o velho recebeu uma ovação entusiasmada dos outros transeuntes, e uma mulher de meia-idade puxou o lenço ao nariz, comovida. Ninguém reparara que a cara de Sergei Gavrilovich ostentava um farto bigode, incompatível com a condição de pequeno gazeteiro a caminho da delinquência. É tão forte o cuidado com a juventude, o receio de onde irá parar, ela e o mundo, o medo de que esteja perdida, que pouco interessava à multidão se o descomposto era um rapazito ainda com cara de pêssego, ou um rapagão de olheiras fundas. Chamar à ordem aquele que se ia deixando arrastar pelo vício punha a alma lavada. De tal modo que não podemos levar a mal se muitos dos que assistiam à prédica se sentissem já dispensados de ir à missa nas duas semanas seguintes. Quantas vezes não se ia lá e o padre só sermonizava banalidades, sem elevação nem verdadeiro amor pela humanidade. Agora ali, sim, estava-se perante uma daquelas ocasiões nobres em que o peito se enche de orgulho por se fazer parte do mar da história e da cozinha da sociabilidade. Assim se renovava a confiança nos muros que nos afastam da selvajaria, os muros nos quais cada um é um pequeno tijolo apoiando os outros numa grandiosa ascensão até aos céus. Mais um tijolo no muro.
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