terça-feira, 22 de março de 2016

História gótica


7. Acordara de manhã com um pressentimento.
Não se lembrava do que tinha sonhado, mas a sensação ficara. Uma sensação de desconforto, de perigo iminente, como se tudo de repente pudesse ruir à sua volta. E agora, já depois de abrir as cortinas e de lavar a cara com a água quase gelada, olhava para o espelho e via olheiras, rugas nos cantos da boca, uma expressão preocupada. Mas havia tanto que fazer, que em poucos momentos deixou de pensar na noite agitada e na sensação desconfortável. "É dia de arear panelas.", foi pensando enquanto descia as escadas para o rés-do-chão e prendia o cabelo com ganchos. "Mas tenho que me despachar com o pequeno-almoço, devem estar quase a aparecer." A cozinha ainda estava muito escura, o sol levantava-se do lado oposto da casa e só de tarde havia luz forte. "E calor." Coisa que saberia bem depois de uma noite chuvosa. "Teimoso. Tanto que eu lhe disse para construir a casa de outra maneira. Mas não é ele que se levanta cedo para acender as brasas e aquecer o chá." Vestiu o avental e remexeu as brasas do dia anterior, e colocou na lareira mais um tronco e uns ramos ressequidos. "Nem para lavar loiça. E esfregar o chão, chegaram ontem com as botas cheias de lama." Suspirou ao pensar nas manchas escuras que, depois de pôr as panelas como novas sobre o balcão da cozinha, ia esfregar com uma escova de pêlos fortes, ajoelhada no meio do sabão e da água preta. "Como é que não hei-de ter estes joelhos numa miséria." Dirigiu o queixume a um canário preso numa gaiola de vime. "Anda, meu lindo. Vamos aquecer essas penas ao sol." Na sala, assim que afastou as cortinas entrou uma luz cor-de-rosa. "Parece que o tempo vai estar bom." "Aproveito e lavo a roupa da semana. Veio tão encardida, mais uma coisa para esfregar." Voltou para a cozinha e pôs a água a aquecer para o chá. Enquanto esperava que fervesse, pôs a mesa, tirou o pão de um saco com umas flores amarelas, e sentou-se num dos bancos com a cara encostada à mão e o cotovelo apoiado no tampo de madeira. Deixou-se dormir, acordou-a um gato roçando-se pelas pernas. Tinha entrado pela janela que ela abrira para deixar sair o fumo da lareira. "Já cá estás. Malandro, a noite toda fora." Assim que se debruçou para dar ao gato umas aparas de carne e uma tigela com água, sentiu um arrepio. Endireitou-se e à sua frente, através da janela, viu o contorno do castelo que parecia equilibrar-se no alto de uma colina por milagre. Ou maldição.

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