segunda-feira, 21 de março de 2016

História gótica


6. Sete harpias castanhas pousaram sobre o sarcófago.
Deram mais um passo atrás as criaturas. Só as quatro crianças iguais se mantiveram a um passo do caixão. As harpias fincaram as garras fortes na madeira envernizada, abriram as asas, e, enchendo a cripta de gritos e guinchos, levantaram a tampa deixando-a cair com estrondo aos pés do gigante que segurava o retrato. Aos pés do retrato, talvez. Todos deram ainda outro passo atrás. Mais uma vez, só as quatro crianças não se moveram. O ar abafado e pestilento do mausoléu faria o marinheiro de estômago mais forte, o veterano mais endurecido, o carniceiro mais indiferente, o anacoreta mais impassível, perder os sentidos no meio do seu próprio vómito. Seria fatal o colapso se pudessem ainda sentir o novo odor que se misturou aos cheiros repulsivos que já enchiam a tumba. Um odor que se sobrepôs a esses outros alimentando-se deles, ganhando nova força e nova qualidade com essa mistura. Um odor infecto, de morgues sobrelotadas, de leprosarias cheias abandonadas à sua sorte em ilhas inacessíveis. O odor das latrinas de uma cidade sitiada, de um exército cercado. O odor a medo e excrementos dos criminosos à espera da cruz. O odor do hálito da Medusa. O odor que deve vir do Tártaro se no Tártaro apodrecerem corpos por toda a eternidade. O odor do suor dos escravos ao fim de um dia, um dia só de escravo, tem o seu cheiro próprio e medonho a escravidão. Esse odor vinha de dentro do esquife, mas não parecia incomodar as criaturas. Pelo contrário, os músculos tensos dos seus membros distenderam-se e a sua respiração acalmou-se. Os pequenos risos nervosos cessaram. A mulher de vestido prateado e capa cor de vinho colocou-se à cabeceira do caixão. O mesmo fez o homem coxo, apertando com a mão o cabo do punhal que trazia à cintura. O crucifixo, escondera-o nas dobras da roupa. "Que não venha a ser preciso", desejou com força tal que temeu ter desejado em voz alta. Mas ninguém olhou na sua direcção. O gigante de mãos delicadas colocou no extremo oposto às duas personagens a moldura de talha dourada, apoiada num cavalete. Assim que a pousou, a tela passou do nada ao esboço de uma figura incompleta, do esboço às cores carregadas de um retrato. Se quiséssemos fazê-lo, poderíamos reconhecer nela agora a cabeça e o torso de um cavaleiro mongol com um peitoral de ferro. As peles que lhe cobriam o escalpe acentuavam a fereza das fendas onde em vão procuraríamos olhos e de onde um fulgor inquietante saía. As fendas não eram aberturas por onde pudéssemos chegar a um qualquer íntimo, como se pretende ser possível fazer quando olhamos para os olhos de uma pessoa, até mesmo de uma pessoa representada num quadro. As fendas eram só uma saída, uma saída para torrentes de luz concentrada como um raio, e tão  mortal quanto este. Uma saída para a aniquilação, nada mais conhecem os guerreiros selvagens e nada mais fazem que não seja destruir, arrasar, exterminar. Por trás do quadro e do gigante, uma criatura transparente com flores secas nos cabelos e lábios secos no rosto, arrastando a cauda de um vestido que não deixava à sua passagem qualquer rasto, levantou um braço aos céus, outro baixou-o na direcção da terra, e clamou. "Senhor, levantai-vos, Senhor. Vossa é a terra, tomai-a. Vossa é a vida, subjugai-a. Vossos os penedos, as estrelas, os abismos. Vossos o sim e o não. Vossos o falso e o vero, o antes, o depois, o agora. Vosso o tempo. Vosso o espaço. Vosso o que os ocupe. Vosso o que já existiu e o que ainda não existe, o que fatalmente existirá, o que poderá não vir a ser, o que nunca será. Vosso o húmido e o seco, o quente e o frio, o branco e o negro. Vosso o domínio. Vosso. Senhor, levantai-vos, Senhor."

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