44. Nergüi atravessa os vastos espaços abertos da Mongólia, desta vez sozinho.
Do alto do cavalo que avança devagar, procura nos arbustos esparsos da estepe sinais de roedores ou escavadores de túneis. Não come desde que partiu da povoação de tendas redondas que sempre ajudara a montar, a desmontar, a transportar de um lugar para o outro dos planaltos. Sabia o que era uma cidade que não se mexe, mas só porque os camelos carregados da sua tribo passavam pelos edifícios pesados a caminho do próximo acampamento. Quando viu uma cidade pela primeira vez, pensou que era uma daquelas miragens com que os espíritos atormentam os homens, porque assim diziam as histórias da sua avó, para lá do círculo das tendas o mundo estava cheio de espíritos e os espíritos ocupam o seu tempo a enganar quem se deixa encantar por eles. Desconfiou da cidade, portanto, ainda que a tivesse achado espantosa. Tentou perceber o que poderiam os espíritos querer com aquela ilusão, e o que percebeu fez para ele todo o sentido. A cidade imóvel era um grande cemitério para onde os espíritos atraíam aqueles que queriam prender nos seus monumentos fúnebres. As casas, de cujas janelas e portas espreitavam caras risonhas, eram na verdade túmulos e prisões. E o desprezo com que o pai olhava para os habitantes flácidos e pálidos destes lugares estáticos confirmava a sua convicção, nas cidades só moram os mortos, as cidades são os lugares onde a viagem acaba. "Ou o deserto, ou as montanhas", dizia-lhe sempre o pai, "e o caminho entre os dois." "Na cidade não sentes o cheiro dos cavalos e das peles suadas." Nergüi viajava do deserto a sul para a taiga a norte. Fazia parte da formação do jovem guerreiro a travessia solitária do território, um chefe tem que aprender primeiro a dominar-se a si próprio. "Se conseguires sobreviver", disse-lhe o pai, "conseguirás levar a tua tribo em segurança. Para onde quiseres. Seguir-te-ão se souberes conduzir. Para aprenderes, conduz-te primeiro a ti e ao teu cavalo. Se nos voltarmos a ver, terás aprendido." A seta prendeu ao chão o pequeno mamífero de pêlo quase branco. Nergüi desmontou do cavalo. Um fio de água muito estreito, serviu-lhe para lavar das mãos o sangue do animal que já assava numa fogueira. O cavalo bebia água enquanto Nergüi lavava as mãos, mas parou quando ela se tornou vermelha. Nergüi nunca compreendera a repugnância dos cavalos pelos corpos dos animais acabados de matar. Acompanhavam desde sempre os caçadores, dos seus lombos escorriam as vísceras das presas que transportavam, dormiam perto das fogueiras onde eram cozinhadas, usavam o couro e as peles desses outros animais nos dentes, no dorso, nas orelhas. Como podiam não perceber que era necessário, e precioso, matar. Um animal morto vale muito. "São estúpidos, os cavalos", disse Nergüi em voz alta. Mas ao mesmo tempo pensou numa explicação para o comportamento dos cavalos que o incomodava desde pequeno, que a sua repugnância fosse uma censura, e que as selas e freios que usavam fossem para eles não um benefício mas um dano. "Estúpidos", repetiu. Quando acordou no dia seguinte já o cavalo pastava. Nergüi sentiu um arrepio quando o viu, porque nessa noite tinha sonhado que era trespassado por uma seta de fogo lançada das narinas de um cavalo muito parecido com o seu, mas enorme e enfurecido. Vingador. Pensou se não seria demasiado fraco para ser um chefe, ele que tinha medo de um cavalo manso como aquele que pastava e afastava as moscas com um golpe da cauda. Pensou logo a seguir se não seria o seu medo um truque dos espíritos e uma prova. Preparou-se para partir.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Não são permitidos comentários anónimos.