Quando parecia que já não havia mais causas fracturantes para nos fazer perder o nosso rico tempo, vem a Margarete Stokowski (no Spiegel online) falar das casas de banho públicas. Ora vejam:
(em versão sintetizada e traduzida à pressa, como de costume, com links para artigos em alemão e, na parte relativa ao risco de suicídio, em inglês)
Segundo uma nova lei, no North Carolina as pessoas são obrigadas a usar a casa de banho pública correspondente ao sexo que consta na sua certidão de nascimento. Para os transexuais, isso significa que, mesmo vivendo há anos ou décadas como mulher, se deve usar a casa de banho dos homens - e vice-versa. E aceitar sujeitar-se ao sentimento de desconforto, aos insultos, às agressões físicas ou à expulsão desse local, que é o que costuma acontecer nesses casos. A alternativa é ir aguentando até encontrar uma casa de banho privada.
As casas de banho públicas são o exemplo preferido para mostrar como tudo fica incrivelmente complicado quando se trata de acomodar os interesses de todas as minorias trans-, inter- ou qualquer coisa com gender queer: essa gente é tão complicada, não é? Até nas casas de banho nos complicam a vida.
No entanto, há muito que frequentamos casas de banho públicas unissexo nos aviões e nos comboios, e nem reparamos.
Podia ser tão fácil: casas de banho para todos. Pode-se e deve-se discutir sobre muitas coisas, mas não devia ser preciso discutir sobre a necessidade de escolher tranquilamente a casa de banho que se quer usar.
E nem sequer é preciso fazer obras. Basta mudar as placas, para "em pé / sentado" ou "com urinol / sem urinol".
Mal se diz "casa de banho unissexo" ou "para todos os géneros" aparece logo um Martenstein a sugerir que as pessoas mintam. "O melhor que os transexuais e intersexuais alemães podem fazer pelo seu país resume-se na seguinte frase: a outra casa de banho está avariada." Que a um jornalista premiado não ocorra que é muito fácil ir verificar se essa afirmação é verdadeira, e que as mentiras podem ser punidas com tareias, ilustra bem a ignorância das pessoas nestas questões de género.
A propósito de músicos famosos que cancelaram os seus concertos nesse Estado, como protesto contra esta lei, alguém comentava no facebook do Spiegel: "talvez as pessoas estejam farta de ser OBRIGADAS a seguir todas as modas idiotas? Tanto o politicamente correcto como estas manias de género surgiram nos EUA." Como este facebook, aliás. Outro escrevia: "Desculpem, mas afinal para que é preciso uma lei? Com pénis = casa de banho dos homens, sem pénis = casa de banho das mulheres."
A mensagem é a mesma - seja do Martenstein, ou dos comentadores: "se eu não tenho problemas, porque é que querem mudar?"
Como é possível pensar assim? Será que estas pessoas querem tirar das prateleiras dos supermercados os produtos que elas próprias não consomem? Querem tirar as legendas aos filmes na sua língua, porque elas entendem tudo? Querem que se poupe o dinheiro da iluminação pública nas noites em que não saem?
Em qualquer embalagem de Snickers vem escrito em grandes letras que contém amendoins. Quantas pessoas são alérgicas a amendoins? Diz-se que 0,5% a 1% das crianças alemãs. Se não nos incomoda marcar as embalagens de chocolate em função dos interesses de minorias, o que nos impede de fazer o mesmo com as casas de banho?
Será que as pessoas que se irritam com as casas de banho unissexo sabem que as pessoas transexuais são alvo muito mais frequente de ataques, e têm um risco maior de depressão e suicídio? E não é por predeterminação natural. Quanto maior o número de experiências de rejeição no seu contexto social, maior o risco de suicídio.
Sinceramente: não entendo como é que as pessoas que sabem isto, e continuam a afirmar que exigir casas de banho públicas unissexo é uma perda de tempo e uma patetice, conseguem ver-se ao espelho quando estão a lavar as mãos depois de terem usado com toda a tranquilidade a casa de banho pública.
[Nota 1: A última frase resolveu-me uma dúvida existencial antiga: porque é que há pessoas que não lavam as mãos quando usam a casa de banho? Agora sei: por algum motivo grave, não têm coragem de se ver ao espelho...]
[Nota 2: O artigo do Martenstein diz que em Kreuzberg, Berlim, vão pôr caixas à volta dos urinóis, para impedir que os outros utentes vejam o que ali se está a mostrar. O Martenstein fala nos custos desta medida, e que em vez de exigir essa despesa aos cofres do Estado era muito mais patriótico o transexual ir à casa de banho feminina desculpando-se com uma pequena mentira. Ora, essa das caixas interessa-me muito. Já ouvi muitas vezes rapazes, ou até homens mais velhos, queixarem-se de de se sentirem incomodados pelo interesse que o vizinho de urinol demonstra pelo que ali se mostra. Ora, enquanto não conseguirmos educar todo o povo para respeitar a intimidade alheia mesmo quando é exposta, talvez fosse boa ideia pensar nessas caixinhas para todos...] [Esta última sugestão é só para provocar, claro.]
Já no seu livro "Crossing: a memoir", Deirdre McCloskey (antes Donald McCloskey), famosa professora de Economia da Universidade de Chicago, falou por diversas vezes da obsessão dos americanos com as casas de banho.
ResponderEliminarDuas coisas que me ocorrem acerca disso:
ResponderEliminara) há partida, o que me parece ter mais lógica é as pessoas irem à casa de banho correspondente às suas características sexuais secundárias - nem faz grande sentido alguém com a aparência exterior de uma mulher ir à casa de banho dos homens porque se sente um homem, nem alguém com a aparência exterior de uma mulher ir à casa de banho dos homens porque tem um cromossoma X e outro Y (admito que este regra possa não ser muito fácil de aplicar durante a fase de transição)
b) Uma coisa que noto nas polémicas sobre isso é os exemplos retóricos normalmente serem sobre as casas de banho femininas (normalmente usando o exemplo do "predador" ou do "voyeur" que alega ser transexual para ir à casa de banho das mulheres); mas parece-me que o que é pode levantar problemas é a questão de quem vai à casa de banho dos homens - se as casas de banho das mulheres forem como eu penso que são, parece-me que pouca diferença (só talvez na questão da fila de espera) faz se quem lá vai são mulheres (de nascença ou pós-operação), homens (idem), hermafroditas ou cangurus amestrados (não sei se as mulheres que estejam a ler isto concordam com a minha opinião).
Miguel,
Eliminarà parte a questão dos urinóis abertos, não percebo porque é que a casa de banho deve ser separada para homens e mulheres. Será que esta separação vem de tempos antigos, em que os sexos andavam muito mais separados? Será que tem tendência a desaparecer, tal como nas igrejas já não se separam os homens (à frente) das mulheres (atrás)?
Ou será que as mulheres não querem ser vistas por homens quando se estão a pentear, a pôr o baton, essas coisas?
Sim, hoje em dia as mulheres não fazem chichi em renques de sanitas como os urinóis, cada uma tem a sua baia fechada (digo hoje em dia porque já ouvi dizer que no tempo da Maria Antonieta era tudo ao molho e fé em Deus.
ResponderEliminarE o mesmo conceito (baias fechadas) aplica-se geralmente em todas as casas de banho unisexo.
EliminarPelo que sempre me pareceu que este tipo de lei pretende ser muito mais normalizadora (no sentido de punir a excepção / normalizar a descriminação) do que responder a uma real necessidade. Aliás, no caso mais mediático actual (a lei da Carolina do Norte) parece-me que a questão das casas de banho tem sido apenas uma folha de videira para esconder a verdadeira intenção da lei, que é impedir leis locais anti-discriminação.
Há menos de duas semanas fui ao Starbucks. Pedi o café e ia para ir ao quarto-de-banho enquanto esperava, mas o das mulheres esteve ocupado durante mais de cinco minutos. O meu café já estava no balcão, eu fiquei chateada, e decidi ir ao dos homens, que estava livre. Agora vens dizer-me que eu podia ter levado uma tareia ou um tiro, que é mais ao TX, se pensassem que eu era transsexual. Ora bolas, nem me tinha ocorrido isso. Sou uma paz de alma...
ResponderEliminarUfff!
EliminarCorreste perigo de vida!
(por muito menos, a Gisberta...)
Helena, suponho que o principal problema é de ordem prática (e o exemplo dos aviões é um bom exemplo) e tem a ver com a estrutura das casas de banho. Se estas fossem do estilo "cubículo" - como existem, aliás, as pagas nas cidades - não haveria problema. Já com o formato actual, complica um pouco - apesar de eu gostar de perceber como é que se lida (pelos mesmos argumentos de risco sexual) com homossexuais nas casas de banho actuais.
ResponderEliminarMas é a tal coisa - creio que esse problema é só para as nossas casas de banho (as das mulheres já são "cubículo", não?)
EliminarMiguel,
EliminarAs das mulheres já são cubículo, excepto na China, onde vi algumas assim, mas sem porta...
Carlos,
pois é, pois é - só problemas...
E também há a questão dos filhos que vão com o pai. Não sei que me parece levar uma menina de 5 anos para a casa de banho masculina.
Miguel / Helena,
EliminarNão estou a falar da "zona das sanitas" (também nos homens são cubículos), mas sim dos lavatórios. Uma construção aberta para os lavatórios (como se vê em alguns restaurantes, por exemplo), com cubículos individuais ao lado (e, sim, alguns podiam ser com urinóis só para homens por uma questão de eficiência do processo e de limpeza para evitar o "tiro ao alvo") resolveria bem a situação.
Se fosse hoje, Ray Davies teria pensado duas vezes antes de escrever esta canção:
ResponderEliminarhttps://www.youtube.com/watch?v=LemG0cvc4oU