Ontem à noite vi "Vertigo", um filme que, apesar de ter sido considerado um falhanço aquando da sua estreia, é hoje considerada a obra-prima de Alfred Hitchcock. Já tinha visto o filme há bastantes anos, mas não o tinha muito presente na minha memória. Como é um dos muitos DVDs que o meu marido me costumava oferecer pelo Natal e por altura do meu aniversário, decidi pôr a minha educação cinematográfica em dia.
A primeira coisa que reparei foi a banda sonora porque é não só imponente, como cria mesmo uma atmosfera sinistra. No início do filme, depois do enquadramento inicial da história, há longas partes em que não há diálogo, apenas observamos John Ferguson a observar Madeleine e ouvimos a banda sonora. Esta parte do filme causou-me uma sensação estranha, pois senti que estava a espiar alguém, como se fosse um detective que seguia o detective...
Quando Ferguson segue Madeleine até Fort Point, reparei na forma como as ondas da Baía de S. Francisco batem contra o molhe e pareceu-me que as próprias ondas eram uma personagem que estava sujeita à direcção de Hitchcock. Essa impressão é ainda mais forte no momento em que Ferguson beija Madeleine em Cypress Point, pois o beijo dá-se no momento exacto em que a onda bate nas rochas e a espuma do mar se espalha atrás dos dois, como se o beijo se iluminasse pelo branco da espuma do mar.
O DVD que eu tenho é de uma edição restaurada do filme e durante o processo de restauração as cores foram corrigidas para se aproximarem o mais possível ao filme original. A cor do filme é realmente única e, para mim, também é uma componente da história. Já fui a S. Francisco e as cores de que me recordo são mais sumidas e claras, mas no filme há qualquer coisa de decisivo nelas, como se os tons escolhidos fossem eles próprios uma manifestação da tragédia e do mistério que o filme relata. Nos documentários acerca do filme, a cor é uma das coisas mais faladas.
Depois percebi o que as cores significavam para mim: recordavam-me de "Os Amantes", o quadro de René Magritte de 1928. Trinta anos separam o quadro e o filme. Há várias sequências no filme em que Ferguson beija Madeleine/Judy, nas quais o enquadramento da cena é semelhante ao do quadro. No quadro, os amantes estão envoltos em tecido, como se houvesse algo de misterioso que os separa e não permite que se vejam um ao outro.
É estranho que um beijo, algo de tão íntimo, seja trocado por pessoas que não se conseguem ver. No entanto, se pensarmos bem, todos os beijos são assim porque nós não conhecemos verdadeiramente ninguém. Temos uma ideia do que é a outra pessoa, mas a ideia que temos é uma aproximação da pessoa, nunca corresponde exactamente ao real.
No filme, o que os separa não é um pedaço de tecido, mas ambos os amantes estão envoltos num mistério, pois cada um desconhece a realidade do outro. Ambos são pessoas aquém do seu potencial: ele porque sofre de uma fobia; ela porque representa uma mulher que não existe. É psicológico o tecido que os separa. É sempre psicológico o tecido que nos separa a todos...
Quando o filme terminou, senti exactamente o que tinha sentido a primeira vez que vi aquele final; foi como se o tecido que separa o eu presente do eu passado se tivesse momentaneamente dissipado.
O Vertigo é um dos meus filmes preferidos. Vi a versão remasterizada no cinema, no final dos anos 90, e fiquei absolutamente maravilhado. A partir daí devo ter visto o filme mais de 10 vezes. Acho-o uma metáfora perfeita daquilo que entendemos chamar paixão.
ResponderEliminarMuito interessante a analogia entre o beijo de Vertigo e do Magritte. Não só pela cor mas pela análise psicológica. O tecido como um resguardo. Muito bom! Obrigada :-)
ResponderEliminarObrigada eu, Helena. :-)
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