A recente canonização de Madre Teresa de Calcutá pelo Papa Francisco interpela-nos sobre até que ponto, nesta “pós-modernidade” ou “modernidade tardia”, faz sentido alguém ser declarado santo ou santa. Por certo para os crentes na religião católica, a questão não terá grande relevo, na medida em que se habituaram a ver neles um exemplo, um convite a uma vida diferente, uma espécie de vislumbre antecipado da casa do Pai.
Mas para os não-crentes ou mesmo para os que professam outra religião em que ninguém é declarado santo, estamos, amiúde, perante uma espécie de “regresso ao passado”, um resquício dos tempos medievos. A História ensina-nos que a separação entre os católicos e os protestantes se deveu, de entre uma plêiade de aspectos, também a esta distinta concepção, segundo a qual ninguém pode assemelhar-se ao próprio Deus ou a Cristo, pelo que a veneração deve sê-lo somente a Ele e não a “intermediários”, por mais qualificados que sejam. Também se não ignora que o catálogo dos santos católicos está repleto de vários que tiveram tudo menos uma vida exemplar ou mesmo casos em que o acesso à prerrogativa da veneração dos altares foi comprado ao Papado, numa época em que este era o mais relevante dos Estados mundanos.
A Igreja Católica deve aceitar a sua História de forma completa e transparente. Torna-se mais Igreja quando pede perdão ao mundo pelos horrores da Inquisição, da perseguição sistemática à ciência e aos silêncios e mesmo acções cúmplices em conflitos mundiais, em especial na II Grande Guerra. Uma instituição construída por mulheres e homens está condenada a errar, sem que tal ponha em causa o importante papel social que desenvolve, como vários dirigentes sem qualquer simpatia pelo Catolicismo vêm reconhecendo, em importante exercício de honestidade.
Madre Teresa não era perfeita e é curioso como em vésperas de cerimónias deste tipo aparecem “pecados e pecadilhos”, no sentido de nos alertar para que a “mãe dos pobres”, afinal, não era assim tão boa pessoa… Pergunto-me apenas se eu me posso comparar, no que fiz pelos outros até aqui, com aquela franzina mulher. A resposta é abertamente negativa.
Encaro a santidade não como um dogma, mas como um convite ao aperfeiçoamento. Não me custaria viver numa religião que não fizesse beatos e santos, mas se limitasse a apontar caminhos que conduzem a um mais perfeito bem-comum. É esse, no fundo, o sentido último de elevar alguém ao altar da santidade. O actual Papa, mesmo dentro dos espartilhos com que sempre terá de pronunciar-se, vai deixando isso nas entrelinhas. Vale mais uma pessoa de boa vontade no terreno que um santo no altar. Daí que as pressões de muitos Estados, congregações e outros movimentos da Igreja no sentido de que “um dos seus” seja beatificado ou canonizado, nada mais são que manifestações de uma espécie de “nacionalismo religioso”. Na sua definição, o elo com o divino não conhece fronteiras, línguas ou raças. E muito menos deve dedicar-se a contentar cliques por interesses económicos ou de afirmação mais ou menos serôdia perante outros países.
Vivo, assim, a canonização de um ser humano similar a qualquer um de nós como um tempo de paragem e de reflexão. O que temos feito nós para que esta casa comum se torne um pouco melhor? Não se trata de uma vontade pia ou de um desejo pueril. Creio bem que, quando enfrentarmos a Grande Ceifeira, todos nos questionaremos sobre isso, de um modo ou de outro. Fui sempre pouco dado a categorizações definitivas ao género da “teoria da etiquetagem” da Criminologia, pelo que o maniqueísmo entre bons e maus só se ajusta em idades inocentes em que, para comermos a sopa, éramos assustados com o lobo mau ou com o cigano. Ou mesmo com a figura do polícia. Não poderia haver pior forma de educar para a diferença. Curioso como estereotipamos o mundo, por assim ele surgir como mais simples de entender. Pobre visão redutora e criadora de uma mundivisão nada inclusiva.
Mais do que as santas e santos dos altares, temos os nossos heróis por conta própria: familiares, amigos, um conjunto de gente como nós, com defeitos e qualidades, mas que, de algum modo, nos transmite a paz e a serenidade que constituem os bens mais escassos nas hodiernas sociedades. Crentes e não-crentes, católicos, judeus, muçulmanos ou hindus, agnósticos ou ateus: a História ensina que se divide para reinar. Ora, em domínios como este, o pior que nos podia acontecer enquanto seres humanos é usarmos eventos como o da canonização de alguém para acicatar ainda mais as feridas religiosas.
Uma sociedade em que se havia anunciado o fim da vivência do divino, pelo vazio metódico deixado pela espuma dos dias, arrisca-se a ser uma das épocas mais marcadas pelo fenómeno religioso. A tecnologia não destruiu a relação com o transcendente, apesar de tantos apóstolos do “ópio do povo”. E como poderia, quando ser humano é ter em si a aspiração ao que se não vê, chamemos-lhe auto-confiança, energias, Deus ou Alá?
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