domingo, 18 de setembro de 2016

As claques e a diabolização do adversário (V)



E com este post termino aquilo que me parecem ser as mudanças operadas na sociedade portuguesa que justificam a prevalência atual das claques e do discurso “diabolizador”. Infelizmente penso, aliás, que esta tendência está para ficar. 

Resumindo brevemente os quatros posts anteriores: (a) o espaço público é hoje dominado por claques, pompons, diabolização do adversário e insultos, em detrimento de ideias, modelos e programas; (b) há razões estruturais para isso (isto é, para além dos protagonistas conjunturais); (c) entre essas razões estruturais, destaca-se o progressivo desaparecimento do eleitorado flutuante (quase metade em vinte anos), o ciclo político “infeliz” desde 1999 (ausência de recursos para manter a base de apoio depois de obter uma maioria suficiente para governar), a necessidade de mobilizar o eleitorado fiel nos círculos eleitorais menos cacicados (onde precisamente se disputam os 49 lugares em jogo dos 230 deputados a eleger) e as mudanças no sistema partidário (a viragem à esquerda do eleitorado entre 1995 e 2012, o sucesso eleitoral do BE, a viragem à direita do PSD).

Dizer que o discurso “diabolizador” domina as redes sociais é óbvio. Elas permitiram a muitos portugueses tornarem-se comentadores políticos. E por comentador político entende-se adotar um discurso maniqueísta (o meu chefe é bom e tudo o que diz ou faz é bom, o teu chefe é mau e tudo o que diz ou faz é mau) e “malhar” no adversário. A própria estrutura das redes sociais facilita os pompons e o “tu matas, eu esfolo”, em detrimento de qualquer debate intelectualmente estimulante. Ora, se Facebook, Twitter e afins servem para “malhar” em vez de “discutir”, menos óbvio e bastante mais grave é que o discurso maniqueísta “diabolizador” a que por lá se assiste contagiou e domina agora a comunicação política dos partidos, e não contrário. Penso que aí se conjugaram dois fatores relevantes.

Primeiro, a produção de ideias politicas. Em Portugal, nunca houve centros de criação de conhecimento para os partidos. Nunca houve think tanks (aqueles que se assumem como tal são de gargalhada), nunca as fundações ou institutos partidários fizeram qualquer esforço intelectual, nunca os famosos gabinetes de estudo produziram conhecimento. Basta ver que o mesmo partido que no governo domina as estatísticas nacionais e os alegados estudos de qualquer política pública, na oposição não tem nada. É comparar o PSD de outubro de 2015 com o PSD de fevereiro de 2016 ou o PS em abril e em setembro de 2011 para perceber como todo o saber é produzido dentro do Estado, pago pelos contribuintes, e que apenas serve o partido que está no governo. Uma vez na oposição, este simplesmente não tem capacidade para discutir números ou impactos. 

O que mudou nos últimos vinte anos? As universidades. O pouco conhecimento que servia os partidos era produzido nas universidades, onde certos centros eram famosos pela sua proximidade aos vários partidos (por exemplo, a FEUNL ou a FCEE da UCP ao PSD, o ISCTE ou o ISEG ao PS, o CES à esquerda do PS). Mas a progressiva internacionalização das ciências sociais, primeiro a Economia, depois a Ciência Política, mais recentemente a Sociologia e outras, afastou a investigação dos interesses partidários. Provavelmente só o Direito continua irredutível a tal evolução.

Não vou discutir aqui se é bom ou mau produzir ciência social em inglês, para revistas internacionais, onde os investigadores estão sujeitos a padrões de avaliação anglo-saxónicos. O que é claro é que essa produção científica se desviou dos interesses conjunturais dos partidos. E que os investigadores dificilmente podem compatibilizar uma carreira de padrões internacionais com uma vida no aparelho do partido. Por alguma razão, a participação de académicos na vida dos partidos desceu nos últimos 40 anos (evidentemente que não é zero) e correspondeu a uma crescente funcionalização dos quadros do PS, PSD e CDS. A ideia de uma carreira académica em ciências sociais como trampolim para a política, sendo comum nos anos 80, praticamente desapareceu hoje em dia.

Portanto, os partidos políticos, principalmente na oposição, não têm hoje acesso à geração de conhecimento que lhes permita outro discurso que não o de maniqueísmo “diabolizador”. Qualquer discurso alternativo exige saber que simplesmente não existe nos partidos políticos.

Junta-se a comunicação social, principalmente as televisões. Desde os anos 90, é verdade que se abriu. Há mais canais, há mais comentadores, há menos governamentalização. Mas, na minha opinião, o efeito positivo inicial dos canais noticiosos (principalmente, a redução drástica do controle governamental da informação) acabou por criar uma dinâmica favorável ao contágio pelas redes sociais. Primeiro, quase todo o comentário político em canal aberto, ou em períodos de alguma audiência, é monopolizado por políticos que se dedicam a fazer o spin do seu partido, a preparar as suas oportunidades futuras (aqui o atual PR é o melhor exemplo) ou a tratar dos seus negócios. Evidentemente que a última coisa que fazem é estimular reflexão. Não é o papel deles. Segundo, os debates nos canais noticiosos raramente são em função do tema a discutir, mas sim dos seus protagonistas. Por isso, temos os mesmos políticos a falar de tudo. Não se encontra uma mesa-redonda de porta-vozes dos partidos para a educação ou para a saúde. Mas temos os vários comentadores partidários obrigados a falar de economia, de justiça e de sociedade no mesmo programa de 20 minutos. Na política, domina, assim, a discussão entre “tudólogos”, em detrimento dos especialistas. Não surpreende, pois, que, para encher tempo em antena, os debates acabem a despejar o discurso “diabolizador”, em vez de argumentos profundos (que logicamente muitos dos participantes não sabem, porque não tiveram tempo para estudar). O debate em função dos atores políticos, e não dos temas, impede a troca séria de ideias.

Hoje os debates televisivos vivem para as redes sociais e as redes sociais para os debates televisivos. Fazem parte do mesmo espaço, onde o que importa é “malhar”, insultar, mobilizar, em prejuízo da discussão ponderada, produtiva. A linguagem na comunicação social deixou de ser um travão ao radicalismo das redes sociais, tornando-se, ao invés, uma forma de o difundir. E as redes sociais têm um papel fundamental em convocar as claques e abafar a voz de quem discorda. Daí também a utilidade cada vez menor das jotas ou dos antigos canais de influência (sindicatos, associações patronais, associações de estudantes, etc.). Hoje os partidos usam as redes sociais para chegar aos seus, condicionar os adversários e influenciar o espaço público de um modo muito mais eficaz do que aquelas organizações fizeram no passado. E essa eficácia faz-se sempre com a diabolização do adversário.


3 comentários:

  1. A diabolização dos adversários políticos, e mesmo o escárnio, nos jornais e nas redes sociais não é um fenómeno português. É universal. Veja-se, por exemplo, a situação nos EUA ou no Brasil. O debate político em Portugal, sendo débil, nunca teve tantas condições para ser bem informado e expôr contraditórios. Se há muito lixo nas redes sociais também há muitos materiais de qualidade, de todos os quadrantes ideológicos. Basta, por exemplo, olhar regularmente para a coluna de links ali ao lado.
    Há sinais de estupidificação, sem dúvida, sendo um dos maiores o facto de um veículo de ódio como o Correio da Manhã ser, a grande distância, o jornal de maior tiragem, a CMTV um dos canais que mais cresce em audiência e a política portuguesa ter sido definitivamente afectada pelo sucesso da sua estratégia editorial. Para isso também contribuiram muitos políticos com responsabilidade que com ele colaboram ou se aproveitam das suas técnicas escabrosas, num vale tudo para atingir os seus objectivos. Em jornais ou televisões, não existe uma artimanha equivalente na esquerda.
    Apesar de tudo, nas legislativas, acho que a esquerda cresceu e o governo ficou dependente da extrema-esquerda porque essas maningancias mediáticas (e judiciais) torpedearam sobretudo o centro e este ficou sem influências representadas nos boletins de voto. O resultado das presidenciais confirmou que o país não estava assim tão virado à esquerda.

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  2. É um julgamento pesado sobre o povo português quando se diz "ausência de recursos para manter a base de apoio". O povo português, portanto, só se move por dinheiro. Triste.

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  3. Um pouco tangencial, mas quem quiser ver mais "esvaziamentos do centro", que olhe para as eleições em Berlim este fim-de-semana.

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