sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Celebridade

Num conto de Tchekhov, numa viagem de comboio, um passageiro de 1.ª classe mete conversa com um homem de uma certa idade e que aparenta ser um intelectual. Diz-lhe que não consegue definir a glória e a celebridade. Dá o seu exemplo. Quando era novo, tinha a mania de um dia ser célebre. Matou-se a trabalhar. Ninguém poderia ter trabalhado mais do que ele ao longo de uma vida. Como engenheiro, tinha construído pontes magnificas em vários países. O seu nome constava em todos os tratados de química no estrangeiro. Foi conselheiro de Estado. Enfim, hoje, já com os pés para a cova, tinha um curriculum vitae irrepreensível. E, no entanto, ninguém o conhecia, a começar pelo seu companheiro de viagem, que admitiu nunca ter ouvido falar no nome Krikunov. Em contrapartida, namorara uma actriz mediana que se tornara uma celebridade. E, ainda por cima, a dita actriz não tivera nem um centésimo do seu trabalho. Como é que a imprensa e o povo se interessaram por ela e por atletas (“corredores”) e a ele, que tinha obtido feitos notáveis, não lhe dedicavam um pingo de atenção? Enfim, era um mistério que lhe escapava. No fim do conto, o colega de viagem diz-lhe que era um eminente professor catedrático em Moscovo, com imensa obra publicada e pergunta a Krikunov se alguma vez ouvira o nome Pushkov. “Não, nunca ouvi”. O conto acaba assim: “olhando-se, desataram às gargalhadas”.
Einstein e Stephen Hawking foram transformados em pop stars, mas são claramente excepções. O normal para 99% dos cientistas é o anonimato e a obscuridade. Há muito tempo que se discute se tal facto é bom ou mau. Para uns é bom, porque é um sinal de que a ciência continua a ser um bastião da racionalidade, impermeável às paixões do dia-a-dia. Para outros é mau, significa que os cientistas estão enfiados em torres de marfim, desligados do mundo real e não conseguem fazer chegar a uma audiência mais vasta as suas descobertas. Seja como for, o anonimato continua a ser a regra. E também continua a ser regra os media transformarem em celebridades atletas, actores, cantores, etc. Desde a publicação do conto de Tchekhov passaram mais de 100 anos, e, no fundo, neste particular, nada de essencial mudou.

7 comentários:

  1. Zé Carlos, tu não sabias, mas eu tenho andado a pensar nesta dualidade porque tenho um post sobre um cirurgião para escrever. Até desvendei alguma coisa do post ao LA-C hoje, durante a minha insónia...

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  2. Já não é nada mau estes dois terem ficado num conto de Tchekov. In saecula.

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  3. Uma possivel razão é que não é preciso jogar bem à bola para ver um jogo de futebol, nem saber cantar para ouvir uma música - mas é preciso dominar uma área científica para perceber o que o cientista dessa área está a fazer.

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  4. A mim o que me fascina são as celebridades em vida (nem estou a pensar em actrizes, atletas, cantores mas sim artistas "sérios", ou seja, escritores, músicos, pintores) de que ninguém se lembra uns anos depois da morte, por oposição a obscuros contemporâneos que acabam por ascender a uma glória que dir-se-ia eterna.

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  5. É curiosa, esta coisa da fama. Ben Johnson era mais famoso e bem sucedido que Shakespeare, enquanto ambos eram vivos. E era o intelectual, o "cientista" das palavras. Alguém que criticava Shakespeare por ele mal saber latim, quanto mais grego. Hoje ninguém sabe quem é, além dos círculos de intelectuais aborrecidos.

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  6. Eu não perdoo o esquecimento dos gregos das ciências naturais, nem o excessivamente longo monopólio de Aristóteles :-)

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