domingo, 13 de novembro de 2016

Os populismos

Escrevi já sobre os acontecimentos recentes, quer no Observador, quer no Público. Qualquer previsão sobre o que vai ser a administração Trump parece-me destinada a falhar dada a ausência de um programa consistente e a total imprevisibilidade do personagem. Por exemplo, ao contrário do que já vi dito, Trump é um isolacionista, mas ao mesmo tempo diz que vai acabar com o ISIS rapidamente. Quer descer impostos (medida tipicamente “neoliberal”), mas também acabar com o comércio livre (medida tipicamente “anti-liberal”) e promover um programa de infraestruturas (ao nível do New Deal). Acredito que as coisas em Washington vão ser business as usual. Aliás os nomes que circulam para a administração mostram isso mesmo. E veremos depois, nas eleições de 2018, por onde param as modas. Sinceramente acho bem mais perigosa a agenda do VP Mike Pence. Pence é um ultraconservador, religioso e anti-evolucionista. Ele, sim, vai insistir numa agenda preocupante em matérias como aborto, matrimónio homossexual, direitos LGBT, etc

Evidentemente que há semelhanças entre Trump, Brexit, e os populismos na Europa. A retórica, o falhanço das sondagens em capturar o fenómeno, o progressivo desaparecimento do agree to disagree, a superioridade moral dos populistas e dos anti-populistas, o teste aos limites da democracia. Mas, dito isto, há algumas diferenças importantes.

Trump e Brexit não surgem inesperadamente. Não são uma mudança brusca das sociedades anglo-americanas. No Reino Unido, a adesão à União Europeia sempre foi contestada (em 1974, foi aprovada por 67%-33%), os principais partidos (Tory e Labour) sempre tiveram uma relação complicada com o tema. O Brexit, sendo inesperado, aconteceu com uma pequena alteração da geografia eleitoral. Não foi um resultado sólido (apenas 52%-48%). O UKIP, aliás, existe desde 1993, mas está agora numa crise interna imensa (tendo quase 5 milhões de votos nas eleições europeias de 2014 e quase 4 milhões de votos nas eleições legislativas de 2015, tem apenas um deputado em Westminster e falhou o assalto aos Tories). Não há partidos novos no horizonte britânico. Já, nos Estados Unidos, Trump tem praticamente os mesmos votos que Romney ou McCain (todos entre 59,5 e 61 milhões), mas menos que Bush/2004 (acima dos 62 milhões). Não há uma horda de votantes racistas e sexistas que apareceu de repente. Mais uma vez, pequenas variações na geografia e na demografia eleitoral deram a presidência a Trump com um resultado muito ajustado (no voto popular, atrás de Clinton).

Na Europa, a situação é muito diferente. AfD, Podemos ou Syriza são movimentos novos. Simplesmente não existiam, nalguns casos, há cinco anos. Em França, a FN teve 5,5 milhões de votos em 2002 (melhor resultado de Jean-Marie Le Pen), hoje tem já um eleitorado de 7 milhões and growing. O mesmo na Áustria ou na Holanda. Portanto, no contexto europeu, há uma mudança clara no sistema partidário. Os movimentos populistas, direita ou esquerda, pretendem simplesmente eliminar os partidos tradicionais (veja-se o que aconteceu na Grécia com o PASOK; veja-se o que aconteceu em Espanha onde o Podemos colocou o sorpasso como primeiro objetivo, e não a substituição de Rajoy; veja-se o que aconteceu na Áustria com o ÖVP e o FPÖ). 

De alguma forma, o populismo anglo-americano aparece inserido no próprio establishment partidário, sem novos partidos ou movimentos de opinião pública. Apenas uma ligeira alteração da correlação de forças. O populismo continental faz-se contra o establishment partidário, com novos partidos que pretendem eliminar os antigos partidos. E com alterações muito significativas na correlação de forças. Quanto a mim, a implicação é clara. Será mais fácil o establishment absorver e “normalizar” o populismo anglo-americano a prazo do que o populismo continental. 

9 comentários:

  1. No caso dos EUA não será porque simplesmente há um conjunto de "paus" (eleições por maioria simples, presidencialismo) e "cenouras" (primárias) que torna muito mais fácil tomar um partido por dentro do que criar um novo?

    "Por exemplo, ao contrário do que já vi dito, Trump é um isolacionista, mas ao mesmo tempo diz que vai acabar com o ISIS rapidamente. "

    Talvez seja um exercicio inglório tentar conceptualizar o pensamento internacional de Trump, mas desconfio que ele não é nem um isolacionista/anti-intervencionista (que ache que os EUA não se devem meter nos assuntos dos outros países) nem um "intervencionista humanitário" (que ache que os EUA têm obrigações para com a humanidade), mas alguém que acha que os EUA só devem intervir para defender os seus interesses, e que acho que islamismo radical é uma ameaça aos EUA, e por isso deve ser combatido em toda a parte (talvez não tão diferente dos conservadores dos anos 60 face ao comunismo, que defendiam que os EUA deveriam ter um exército poderos e combater o comunismo em todo o mundo, mas sem as pretensões dos "liberais" de exportar a democracia, preferindo elogiar Dien e Franco).

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    1. Quer-me parecer que o Miguel Madeira está certo. Sendo um empresário, Trump irá ter uma actuação muito mais pragmática e muito menos ideológica ou de acordo com valores. É este o seu treino. Na questão do intervencionismo/isolacionismo como em várias outras o mais provavel é que Donald Trump acabe a agir segundo os méritos próprios de cada caso sem qualquer guião prévio.

      P.S.: Nuno Garoupa, gostei francamente do seu artigo no Observador. Deu-me realmente prazer lê-lo.

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    2. Se Trump é pragmático ou oportunista, não sei. Certamente não é ideológico (ao contrário do VP que acho um individuo muito mais perigoso). Por isso também acho que tudo vai depender das circunstâncias e dos contextos. Mas parece-me que, independentemente das guerrilhas inevitáveis e mesmo alimentadas por Trump, no fim, ele será apenas outro produto do establishment do seu partido.

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    3. No que toca à primeira parte estamos, então, plenamente sintonizados. No que toca à segunda a emissão já sai mais roufenha. Trump tem sido toda a vida dono de si próprio. É empresário de sucesso. Gosta de mandar. As três coisas juntas fazem-me duvidar muito que acabe por ser mais um do establishment do GOP ou seja de quem for. É muito difícil domar pessoas assim. Quem toda a vida foi independente, fez o que quis e pôs e dispôs como melhor lhe pareceu não se transforma em capacho seja de quem for aos 70 anos.

      O tempo dirá.

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    4. Certo, mas não pode governar sozinho. Tem que recrutar muita gente. E, pelo que ja' sabemos, quase todos são establishment do GOP. Não são gente nova como acontece com o Syriza, o Podemos, a FN, o M5E, o AfD, etc.

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  2. Nuno Garoupa, o que considera ser um movimento "populista"? Qual a sua definição?

    Fui pesquisar à wikipedia e a definição que lá aparece aparenta não enquadrar vários dos exemplo citados no seu post.

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    1. Por movimento populista entendo qualquer partido/associação/coligação que faz do combate ao status-quo a sua mensagem principal. Parte desse combate faz-se com soluções simples para problemas complexos. São partidos que negam o agree to disagree próprio do establishment.Procuram polarizar em vez de consensualizar.

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  3. Em todos os casos, houve mentiras e manipulação da opinião pública. Por exemplo, Trump prometeu crescimento a 6%, Nigel Farage prometeu aumento das despesas com a saúde financiadas pelas poupanças da saída da UE, António Costa disse que Portugal ia crescer a 2,6%, o Syriza disse que ia forçar a UE a vergar-se, etc. Todas estas promessas foram tratadas na Comunicação Social como sendo legítimas e foram racionalizadas por especialistas como possíveis, apesar de serem completa ficção. Os partidos servirão tudo isto porque queriam o poder; ter o poder era mais importante do que ser honesto com o público. Que o público acredite em patranhas é uma coisa -- cada um é livre de acreditar no que quer; que a comunicação social seja uma cúmplice na disseminação das mesmas é outra.

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