O Nuno publicou um artigo no DN sobre as questões “fraturantes” (ele usa o AO90),
mas a Vera discorda da definição de questão “fracturante” (ela é contra o
AO90). Entre o Nuno e a Vera, o AO90 não é uma questão fracturante porque,
apesar das preferências do Nuno, este post
segue o estilo anterior ao AO90 (o que, de resto, está conforme o mais recente parecer da Academia das Ciências de Lisboa).
Mas comece-se pelas ideias que ambos subscrevem a propósito deste tema. Para
depois cada um desenvolver a sua posição de discórdia.
O que torna uma questão fracturante? Nuno e Vera concordam que (i) divide a
sociedade, gerando um importante debate, (ii) diz respeito a valores morais e a
uma noção, mesmo que eventualmente difusa, de regressão/progressão
civilizacional, (iii) no espaço público, definem-se posições de defesa ou
repúdio, possivelmente com algum radicalismo na retórica usada.
E, então, as opiniões dividem-se…
Nuno: Para além de satisfazer (i)-(iii), uma questão fracturante, por ser
moral e fundamental para a organização da sociedade onde vivemos, é uma
prioridade política. Portanto, assim que haja uma maioria parlamentar
favorável, a legislação é alterada ou revogada. Consequentemente, quando não há
reversão, seja por distracção, seja por que não é uma prioridade durante anos,
ou mesmo décadas, a questão não é fracturante. Quanto mim, é a possibilidade de
revogação ou alteração assim que a maioria parlamentar permitir que distingue
uma questão fracturante de um qualquer outro tema onde há apenas uma
divergência ideológica.
Assim, por exemplo, aborto, matrimónio homossexual, direitos LGBT podem ser
questões fracturantes em Espanha ou nos Estados Unidos, onde os conservadores ou os católicos, assim que
tiveram influência, procuraram inverter a legislação “progressista”. Não são
questões fracturantes em Portugal porque não houve qualquer pressão da direita
católica para mudar seja o que for. Não quer dizer que a direita católica
aderiu ou mudou de opinião. Apenas quer dizer que são questões incómodas, mas
não prioritárias. Logo, não sendo prioritárias, são meras divergências de
opinião e não questões fracturantes.
Por contraponto, os contratos de associação com colégios privados, sim, são
uma questão fracturante. Porque cada maioria parlamentar, na ultima década, dedica-se
a revogar a legislação anterior para impor um ponto de vista no modelo de
educação. Portanto, não há uma mera divergência, mas sim uma fractura que cada
lado tenta corrigir assim que tem capacidade para isso.
(Aqui também discordo da Vera porque acho, sim, que os contratos de
associação com colégios privados dizem respeito a valores morais e a uma noção
de progresso civilizacional, pelo menos desde a Revolução Francesa).
Vera: Eu rejeito a noção de que uma questão, para merecer o epíteto de
fracturante, deva ser prioritária, quer no discurso, quer na acção. As
prioridades são sempre relativas e determinadas pelo contexto, como nos ensina a
pirâmide de Maslow. Ora, como o Nuno repetidamente afirma, a Direita tem
governado em alturas de crise económica. Parece-me, pois, que, com o défice
orçamental fora de controlo, a dívida pública a escalar, o financiamento à
economia cortado, o desemprego a aumentar, a população a emigrar, impedir o
casamento de pessoas do mesmo género ou reintroduzir a criminalização das
mulheres que abortam não seriam questões a constar no topo da agenda política.
Para refutar este meu argumento, o Nuno usa o caso espanhol, onde a Direita
reverteu aquilo que eu considero progressos civilizacionais, apesar de a economia
espanhola enfrentar problemas semelhantes aos nossos (nos sintomas, pelo
menos). Eu repito a ideia de que a prioridade não é requisito para a fractura.
E acrescento que as palavras contam. Ou seja, aquilo que se diz sobre
determinado assunto não é inconsequente. E, na ausência de acção legislativa
sobre o tema – o que, a meu ver, se explica bem pelas circunstâncias
socio-económicas –, o discurso é tudo o que temos sobre as posições que se
defendem. Aliás, ideologicamente Direita e Esquerda estão separadas no
entendimento que fazem do papel do Estado. No peso que querem que este tenha,
pelo menos. E, no entanto, não me lembro de um Governo que tenha repensado as
funções do Estado ou reduzido significativamente a carga fiscal. Nesse sentido,
diria que não é a Direita conservadora que não encontra representação, mas sim
a Direita que é liberal.
(Já agora, o exemplo dos contratos de associação com os colégios privados é
que me parece não ser uma questão fracturante, pelo menos na acepção em que
ambos até concordamos, pois, não obstante ter havido acção, dificilmente se lhe
poderia associar um cunho moral ou colocá-la na recta real do progresso
civilizacional.)
Obviamente, não sou tão ingénua que tome o discurso político como sempre genuíno.
Isto é, admito perfeitamente que palavras e sentimentos sejam dissonantes. Mas
repare-se na primeira condição para que uma questão seja fracturante: dividir a
sociedade. A sociedade, não os partidos políticos. Temas como o aborto ou os
direitos LGTB cumprem-na. E – é a minha percepção – dividem a sociedade de uma
forma não equitativa, já que os portugueses são maioritariamente conservadores.
Note-se, aliás, que o Bloco de Esquerda que tinha a “agenda fracturante” era o
que só conseguia dois deputados e ambos por Lisboa. Foi quando o seu discurso
passou a integrar mais “trabalhadores” e menos “homossexuais” que ganhou
lugares na Assembleia da República.
Talvez uma possivel definição para "causas fraturantes" seja "causa que até há pouco tempo não fraturava" - normalmente não se chama "fraturantes" às causas que há décadas ou séculos causam fraturas importantes; é quando a causa em questão é sobre algo que até há pouco tempo era consensual (uns porque defendiam afirmativamente o status quo, outros porque nem pensavam nesse assunto) que se diz que é "fraturante" (e talvez faça sentido, se definirmos "fraturar" como "partir o que estava inteiro")
ResponderEliminarA respeito da direita não ter tentado "fraturar" ao contrário - as alterações que o parlamento anterior fez à lei do aborto abriam caminho à sua ilegalização na prática (já que com as consultas de acompanhamento facimente se chegaria às 10 semanas; e ainda mais com o SNS supervisionado por um governo anti-aborto, que pudesse não fazer muito esforço para que as tais consultas fossem rápidas); isso ficou um bocado escondindo porque a esquerda cometeu a idiotice de deixar a discussão centrar-se na questão quase completamente irrelevante das taxas moderadores (digo que é irrelevante porque as isenções para menores ou para insuficiência económica já cobrem a maioria das IVG de qualquer maneira).
Mas convém lembrar que o espetro politico português à direita é peculiar, comparado com grande parte do mundo, já que o partido conservador/democrata-cristão é o partido menor (ao contrário de Espanha, RU, Alemanha, etc.)
Já agora, acerca de «Note-se, aliás, que o Bloco de Esquerda que tinha a “agenda fracturante” era o que só conseguia dois deputados e ambos por Lisboa.», lembro que o PSR (cujo campanhas era quase tudo sobre drogas/aborto/SMO/homossexuais/antiracismo, e não sobre ocupações de empresas, eleição de sovietes ou solidariedade internacionalista com greves de mineiros bolivianos ou estivadores do Sri Lanka) nunca elegeu um deputado, e que a UDP perdeu o seu exatamente quando se aliou ao PSR. Eu diria que o grande trufo do BE (mesmo para eleger os primeiros dois deputados) foi ter feito de "Manuel Alegre" - um partido para os eleitores do PS descontentes com a aparente desvio deste para a direita.