Para o comum dos mortais, racionalidade é quase equivalente
a sensatez. Uma pessoa racional é ponderada, é possível discutir com
ela, as suas preferências são coerentes com os seus interesses e valores. Para
os economistas, racionalidade não é bem isto. A racionalidade é uma coerência
lógica, sensata ou não. Nesta visão, desde que seja consistente com todas as
suas outras crenças, um indivíduo é racional mesmo que acredite no Pai Natal,
em fantasmas ou no super-homem.
Daniel Kahneman, junto com Amos Tversky, lançaram nos anos
70 as bases da economia comportamental. Entretanto, milhentos estudos mostraram
que os humanos do mundo real não se comportam muitas vezes como os "econs" que
habitam no planeta da teoria. Tal não significa que os humanos sejam
irracionais, dominados sobretudo pela impulsividade, a emocionalidade e
impermeáveis a argumentos sensatos. Nada disso. Significa que os humanos não
conseguem, frequentemente, alcançar a consistência, a coerência lógica que está
subjacente à racionalidade dos modelos económicos. Os humanos (incluindo os
especialistas) deixam-se muitas vezes enganar ou iludir por impulsos e intuições
- apesar de estas serem bastante úteis e certeiras em milhentas decisões
rotineiras. Aliás, nos meus últimos posts foram mencionados alguns desses
enviesamentos – o efeito de enquadramento é apenas um exemplo.
Kahneman e os economistas comportamentais afastam-se da fé
na racionalidade humana da maioria dos economistas, em particular dos da Escola
de Chicago e do seu chefe de fila, Milton Friedman. Friedman no seu Free to choose
(Liberdade para escolher, na edição portuguesa) chega a considerar imoral
proteger as pessoas contra as suas escolhas. Cada um sabe melhor do que ninguém
o que é melhor para si. Ao contrário, os comportamentalistas acham que as
pessoas cometem erros. Os humanos não são irracionais, mas precisam amiúde de
ajuda para fazerem juízos mais exactos e tomarem melhores decisões. As
instituições e a política podem desempenhar esse papel auxiliar. Numa palavra,
a liberdade de escolha tem um preço. A questão é como é que as instituições
podem proteger as pessoas sem, ao mesmo tempo, colocarem a liberdade em causa.
Como sublinha Kahneman, nenhum economista
comportamental defende que o Estado imponha uma dieta equilibrada aos cidadãos
ou que os obrigue a ver apenas programas da TV bons para a alma. Que fazer
então? Kahneman dá exemplos, sugeridos por autores como Cass Sunstein e Richard
Thaler – em 2008, estes autores publicaram Nudge, que se tornou, entretanto,
uma bíblia da economia comportamental. Nos modelos racionais, os econs tomam as
decisões com todo o cuidado e usam toda a informação que lhes é fornecida. Desgraçadamente,
os humanos muitas vezes não fazem isso. Solução? O Estado pode, por exemplo,
obrigar as empresas a fazerem contratos simples, curtos e com letra de tamanho
razoável, em vez dos actuais contratos cheios de páginas e cláusulas em letra
miudinha que ninguém lê.
Por fim, uma palavra sobre a teoria da prospecção, uma das
contribuições mais importantes de Kahneman e do seu amigo Amos Tversky, com implicações
a nível económico, político, etc. Basicamente, a teoria diz-nos que as pessoas
são avessas à perda, a qual é definida em função de um ponto de referência –
exemplo: o meu rendimento, o actual ou o desejado. Entre ganhar 900 euros de
certeza e 90% de probabilidades de ganhar 1000, a maioria prefere a opção
segura. Todavia, esta aversão ao risco transforma-se em preferência pelo risco
se em vez de ganhos falarmos em perdas: prefere perder de certeza 900 euros ou
90% de hipóteses de perder mil? Neste caso, a maioria prefere arriscar.
De qualquer maneira, o ponto é que a aversão à perda é mais
intensa do que a vontade de ganhar. Os animais, incluindo as pessoas, lutam
mais ferozmente para evitar as perdas do que para obter ganhos. Isto explica
por que razão é tão difícil fazer reformas, reestruturações, racionalizações, reorganizações
nas instituições, sejam elas empresas ou o Estado. Sempre que há cortes nos
rendimentos ou direitos dos trabalhadores, mesmo o mais pacato e passivo pode
de repente transformar-se numa fera na defesa do seu território. E a ferocidade
e intensidade dos potenciais vencidos é muito superior ao empenho dos
potenciais vencedores com a reforma. É por isso que as reformas costumam
incluir cláusulas de excepção que protegem os actuais detentores de posições.
O sentimento de aversão à perda também se estende às perdas
dos outros. Kahneman fala em “castigo altruísta”. Por exemplo, se uma empresa
que vende pás de neve aumentar de forma substancial os preços num nevão, os
estudos mostram que a maioria das pessoas (mais de 80%) acha essa decisão
injusta ou muito injusta – o que, obviamente, contraria as previsões da teoria
económica, que diz que o comportamento económico é governado pelo interesse
próprio e que as preocupações com a justiça são em geral irrelevantes.
Moral da história? É muito ariscado uma instituição (Estado
ou empresa) impor perdas às pessoas, sobretudo se estas estiverem em posição de
retaliar. Há inclusive a forte possibilidade de estranhos, sem nenhuma ligação directa
com a situação, se unirem e solidarizarem com os potenciais perdedores.
"Ao contrário, os comportamentalistas acham que as pessoas cometem erros. Os humanos não são irracionais, mas precisam amiúde de ajuda para fazerem juízos mais exactos e tomarem melhores decisões."
ResponderEliminarAcho esse argumento "comportamentalista" a favor do intervencionismo muito fraquinho, já que é facilmente refutável pelo contra-argumento "e quem vai ajudar os humanos a tomar melhores decisões? Vulcanos hiper-racionais?" Se essas regras e instituições forem feitas por outros humanos, também não estarão eles sujeitos às mesmas irracionalidades - ou talvez até mais (já que o custo de ser irracional é menor quando se está a tomar decisões para outras pessoas do que para nós, ou quando a probabilidade da nossa decisão individual afetar o resultado final é baixa, logo é possível que decisores políticos ou votantes sejam mais irracionais que os individuos nas suas decisões privadas)? Ainda por cima, a evidência empírica das regulações paternalistas parece ir em sinal contrário ao que me parece ser a teoria (de que as pessoas têm uma tendência para pensarem mais nos perigos que nas oportunidades) - a tendência parece ser fazer leis a incentivar as pessoas a tomarem decisões com menos riscos do que tomariam por si - comida saudável, evitar álcool, tabaco e drogas, poupar para a reforma, usar cinto de segurança e capacete na motorizada, etc. (agora ocorre-me uma coisa, até fazendo uma associação mental entre as motorizadas e o meu exemplo dos machos de invertebrados carnívoros no post anterior - será que esses casos em que não é muito certo que realmente se preocupem mais com as ameaças do que com as oportunidades não terão similares nos machos de outras espécies, sobretudo em certas faixas etárias?).
E esse argumento é ainda mais fraquinho quando há, acho eu, mesmo ao lado um argumento muito melhor para defender o intervencionismo a partir do "comportamentalismo" - não o "se as pessoas fossem 100% racionais, o mercado seria eficiente; infelizmente as pessoas não são totalmente racionais, e por isso o Estado tem de intervir" mas sim o "se as pessoas fossem 100% racionais, esta política não resultaria, já que os agentes simplesmente alterariam os seus comportamentos anulando os objetivos pretendidos; felizmente as pessoas não são totalmente racionais, e por isso esta política resulta" - o melhor exemplo serão aqueles questões à volta da "equivalência ricardiana", e se esta refuta ou não o keynesianismo, mas talvez também se aplique a algumas questões do tipo "quem tem que pagar a taxa sobre o metano dos arrotos das vacas são os supermercados, não os criadores ou os consumidores finais"; porque é que eu digo que estes casos fazem mais sentido - porque aqui não é necessário que os decisores sejam mais racionais que os cidadãos comuns para isso fazer sentido; provavelmente é até melhor se os decisores forem também irracionais (e não perceberam que a política que decidiram só funciona se as pessoas não forem plenamente racionais), porque assim poem a referida política em prática com mais convicção.
O Daniel Kahneman não fala em irracionalidade dos humanos, diz até que o desgosta e desanima que muitos interpretem as suas teorias dessa forma. O que ele chama a atenção (e os comportamentalistas) é que as pessoas enganam-se muitas vezes e não é realista esperar que os humanos se comportem como os "Econs" dos modelos económicos. O que ele critica a muitos economistas é o facto de não reconhecerem ou desvalorizarem os erros sistemáticos (enviesamentos) que as pessoas cometem nos seus juízos e escolhas. Como é que se conjuga isto com a ajuda das instituições aos indivíduos sem pôr em causa a liberdade? É essa a questão, uma questão que os Chicagos Boys nem sequer equacionam porque acham que os indivíduos tomam sempre as melhores decisões. Ora, isso está muito longe de ser verdade. Vejamos o caso do sistema de pensões. O que mostra a história? Se deixarmos a cada indivíduo a liberdade de total de poupar (ou não) a pensar na velhice, podemos ter a certeza que vamos criar a prazo um problema descomunal, muito maior que o actual - a maioria das pessoas simplesmente não pouparia. Outra questão. As instituições cometem erros? Com certeza que sim, mas, em princípio, menos do que os indivíduos isolados. Podem ser criados processos de verificação, controlos de qualidade, em que a informação passe por várias pessoas e não sejam tomadas tantas decisões por impulso. Além disso, as instituições devem estar mais conscientes das fontes de enviesamento que afectam os indivíduos nos seus juízos e decisões. Mais: quem está de fora pode de facto ver melhor certos erros em muitas situações. Há riscos de paternalismos e de futuros abusos de controlo do Estado? Há, e, por isso, é necessário ter cuidado e as intervenções das instituições têm de ser bem discutidas e pensadas. De qualquer maneira, já é um princípio admitir que os indivíduos não se comportam muitas vezes como os "econs" dos modelos económicos e de que, em consequência, se enganam muitas vezes. Mas não é uma questão fácil e evidente e nisso estamos de acordo.
Eliminar"chega a considerar imoral proteger as pessoas contra as suas escolhas. Cada um sabe melhor do que ninguém o que é melhor para si. Ao contrário, os comportamentalistas acham que as pessoas cometem erros. "
ResponderEliminarpenso que Friedman também considerou que as pessoas cometem erros; contudo afirmou que as pessoas são livres de cometerem erros (há quem diga que são a melhor forma de aprender na vida)
"Por exemplo, se uma empresa que vende pás de neve aumentar de forma substancial os preços num nevão, os estudos mostram que a maioria das pessoas (mais de 80%) acha essa decisão injusta ou muito injusta – o que, obviamente, contraria as previsões da teoria económica, que diz que o comportamento económico é governado pelo interesse próprio e que as preocupações com a justiça são em geral irrelevantes. "
a empresa que vende pás procura obviamente maximizar a sua receita e terá em conta todos os factores para isso. se percepcionar que terá prejuízos decorrentes de boicotes por aumentar o preço durante os nevões poderá não aumentar tanto o preço pelo que no fundo numa economia concorrencial continua a ser válida a premissa de que o consumidor é quem mais ordena
O Friedman era um génio, no sentido original da palavra (foram os romanos que inventaram a palavra): exerceu uma influência poderosa sobre muita gente e foi uma fonte procriadora de ideias, saber, conhecimento. Não era nenhum fanático, é claro que admitia erros dos indivíduos, só que os considerava negligenciáveis. No fim do dia, o indivíduo, sozinho, guiado apenas pelas suas opções ficaria muito melhor. Os comportamentalistas dizem que não é bem assim e que é mais sensato admitir que esses erros são normais, frequentes e que têm consequências, às vezes graves - como o exemplo do sistema de pensões que mencionei no comentário acima. Os consumidores são soberanos? São. As empresas é que, ao contrário do que prevê a teoria económica, devem ter em consideração que a lei da procura e da oferta não é um processo amoral e, por isso, têm de ter cuidado com retaliações e danos de imagem quando se aproveitam de uma situação que as pessoas podem considerar injusta ou abusiva.
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