terça-feira, 6 de junho de 2017

Contos contrariados 11

Contos contrariados


11. Atrás das flores que vão sendo espalhadas pelo salão da casa e pelos corredores e saletas entra sua excelência a esposa amantíssima do presidente da câmara.
O acontecimento importante que se celebra na casa neste dia de verão com uma longa refeição e numerosos convidados desperta naturalmente o interesse de toda a cidade, das suas autoridades, eminências e entidades distintas, e destas a mais autoritária, eminente e distinta é sua excelência a esposa amantíssima do presidente da câmara. Dona Micá traz ao colo um Lulu da Pomerânia imaculadamente branco e visivelmente acalorado, porque este é um dia de verão, ainda que nem muito quente nem muito frio, e porque os braços de Dona Micá são roliços, se quisermos ser delicados, ou carnudos, se preferirmos descrições mais factuais, ou  obesos, nédios, adiposos, excessivos, se formos de veia crítica, ou até grossos como colunas dóricas e fartos como almofadões gigantes, se nos sentirmos sardónicos. "Água!" diz a voz aflautada de Dona Micá, mais uma vez se quisermos ser delicados, pois se preferirmos descrições mais factuais ou se formos de veia crítica ou se nos sentirmos sardónicos diremos que a voz de Dona Micá é estridente, esganiçada ou estrídula como o som de unhas raspando uma ardósia e amplificado por três microfones defeituosos. "Uma voz de cana rachada" pensa a avó, para quem as expressões experimentadas são mais do que suficientes. "Água!", repete Dona Micá uma oitava acima e de trás das costas amplas de sua excelência a esposa amantíssima do presidente da câmara sai uma figura cinzenta e irresoluta, com uma pequena garrafa de água mineral numa mão e uma pequena bacia metálica na outra. Dona Micá dá um pequeno impulso ao Lulu da Pomerânia imaculadamente branco, que salta dos braços adjectivados como acharmos mais conveniente ou apropriado para o tapete da entrada onde a figura cinzenta e irresoluta pousou a bacia metálica já cheia de água mineral, e bebe grandes golos, ou assim parece, tão rápido é o movimento da língua cor de rosa. "Venho ver como correm os preparativos" diz Dona Micá e a avó pensa "pois" e a Tia Maior leva um lencinho de linho encharcado em perfume de alfazema ao nariz e o Senhor Cura clareia a garganta mas não diz nada e não é claro que pense alguma coisa. 

Sem comentários:

Enviar um comentário

Não são permitidos comentários anónimos.