Hoje não trabalhei porque foi feriado, mas como o senhor das reparações trabalhava, pedi-lhe para vir cá a casa continuar os arranjos e pendurar alguns dos cortinados. Durante o almoço falámos da família e dos tempos que vivemos. Ele nasceu em 1963 e tinha um pai abusivo, a quem a mãe deixou. Contou-me isto porque eu tinha dito que uma das diferenças entre os EUA e Portugal é que nos EUA, até recentemente, quando as pessoas chegavam aos 18 anos o normal era saírem de casa dos pais e irem à sua vida; já em Portugal, o normal é ficar com os pais até se casar e as pessoas casam-se tarde, se se chegam a casar.
O meu argumento era que o sistema americano era superior, pois os jovens tinham a independencia cedo, mas também estavam na idade de cometer erros e os pais os podiam ajudar, ou seja, havia um período de transição entre ser-se jovem e ser-se adulto. Ah, mas o problema agora, dizia-me ele, era que as pessoas tinham filhos, mas esperavam que o sistema cuidasse deles. Os pais não passam tempo com os filhos e têm a expectativa de a escola cuidar dos miúdos. Eu concordei, mas o facto é que hoje em dia há muitas crianças que estão a ser criadas pela mãe, com o pai ausente, e é muito difícil que uma pessoa só consiga dar conta do recado.
Foi aí que ele me contou que tinha crescido num lar assim, pois a mãe deixou o pai por causa deste não a tratar bem. Mas devia ter sido uma época muito díficil para se viver, os anos 60, porque estávamos em plena luta contra a segregação, respondi-lhe. É um estereótipo presumir que os homens negros são pais ausentes e, caramba, há tantos pais brancos que não dão conta do recado e não têm de lidar com serem vítimas de racismo. Não estou a justificar o injustificável, mas tento colocar-me na situação dos outros para tentar apreciar o seu ponto de vista.
A família que ele construiu é completamente diferente: tem uma família "normal", com esposa e dois filhos, um com 15 e outro com 18. O de 15 telefonou durante o almoço porque queria que o pai desse boleia a um amigo que tinha ido passar a noite lá a casa, enquanto ele (o filho de 15) ia brincar com outros amigos. O pai discordou e explicou-lhe: o amigo era convidado dele e tinha feito o favor de o ir visitar para lhe fazer companhia, logo o mínimo que tinha de fazer era levar o amigo a casa. Concordei com o pai, era falta de educação largar o míudo para ir ter com outros.
Continuámos a conversa e ele conta-me que vê o ter crescido com um pai abusivo, cujo comportamento acabou por separar a família, como uma bênção porque foi o que fez com que quisesse dar outro rumo à sua vida. Mas não foi linear, recordam-se que no outro dia ele me tinha dito que durante algum tempo tinha sido sem-abrigo.
Os humanos são uns animais um bocado estranhos: há alguns que precisam de adversidade para ter sucesso e outros que perante a adversidade só conseguer ter insucesso. Com tal dicotomia, é muito difícil tentar chegar a uma sociedade perfeita.
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