sábado, 25 de setembro de 2021

Texas vs. Portugal

Continuando com a nossa pequena obsessão com o aborto no Texas, há pelo menos um médico que desobedeceu à lei do Texas e depois escreveu uma peça de opinião no WashPost sobre a sua desobediência. "Desobediência" é o título do filme sobre o Aristides de Sousa Mendes, cuja história tive oportunidade de conhecer precisamente no Texas, no Museu do Holocausto, em Houston. Surpreendentemente, os livros de história portugueses não ma ensinaram, nem sequer os meus professores, provavelmente porque a sociedade portuguesa quer-se bem-comportada, o que dá jeito quando é preciso ir tomar as vacinas. A história do Aristides de Sousa Mendes devia ser conteúdo obrigatório nas escolas. Felizmente, os americanos já são empacotados com o gene da desobediência: speak truth to power e do the right thing, como se diz cá na terra. Sendo assim, há organizações não-lucrativas nos EUA que ajudam as mulheres necessitadas a ter abortos, se assim o quiserem, mas não é o melhor que se pode fazer e temos de continuar a salvaguardar os direitos destas pessoas.

O conhecimento mínimo que se deve ter dos EUA é que são uma imensa manta de retalhos, dado que há competição por poder entre o governo federal, o governo dos estados, e o governo local (cidades e condados). Para além disso, a Comunicação Social, o chamado quarto poder, é muito poderosa e tão eficaz que andam portugueses a fazer campanha contra o Texas nas redes sociais. Finalmente, a sociedade civil americana é muito activa e por isso anda tudo frequentemente à batatada. O próprio Texas é um estado muito heterogéneo: há sítios muito progressivos, bem mais progressivos do que Portugal, por exemplo, e outros bastante conservadores.

Como dizia a Ruth Bader Ginsberg, "Real change, enduring change, happens one step at a time," o que é ainda mais pungente nos EUA onde, para se mudar alguma coisa, é preciso muito esforço dada a fragmentação do poder. A realidade é que as coisas mudam e, quando mudam, já foram sujeitas a tanto escrutínio e a tantos desafios que é difícil desfazer o que já foi feito. Há décadas que se tenta repelir Roe vs. Wade, a decisão do Supremo Tribunal que concede às mulheres o direito ao aborto, e o caso ainda sobrevive, apesar do suspense contínuo.

Decidi fazer uma pesquisa acerca do aborto em Portugal e a situação não é assim tão diferente de muitos sítios na América, inclusive o Texas. Resume-se assim, de acordo com o abstracto de um estudo do Miguel Areosa Feio, publicado em 2021, no Sociologia: Problemas e Práticas:

A despenalização do aborto previu eliminar os abortos clandestinos, embora ainda existam barreiras ao aborto seguro que afetam mais as mulheres desfavorecidas: objeção de consciência, prazos demasiado curtos para o procedimento, períodos de reflexão obrigatórios ou a estigmatização. Foi investigada a relação entre a formulação legislativa e a sua implementação, sendo que eventuais discrepâncias atestam a falência parcial dos seus objetivos. Foram analisados os dados quantitativos da DGS e qualitativos provenientes de entrevistas e focus group com especialistas e profissionais de saúde. As evidências produziram orientações para debates futuros.
No artigo mesmo, esta parte é de salientar:
Em Portugal existem hospitais em que a generalidade dos profissionais de saúde habilitados para a realização de IG declararam objeção de consciência (Chavkin, Leitman e Polin, 2013), aspeto que se concretiza nas regiões de Lisboa e Vale do Tejo, Açores, Alentejo e nos distritos de Castelo Branco e Guarda por constrangimentos no funcionamento das consultas (DGS, 2016, 2018, 2019; Stifani, Vilar e Vicente, 2018). Nestes casos, o procedimento passa pelo encaminhamento para serviços privados, o que, na grande maioria das situações acontece para o centro da cidade de Lisboa, independentemente da zona de residência da mulher, numa manifesta iniquidade na garantia plena do direito à saúde em situações de aborto.
Esta é a realidade portuguesa, o que me leva a pensar nas mulheres portuguesas a quem a lei portuguesa falha e que vêem a campanha que se faz em Portugal para mudar o Texas -- ou será para enxovalhar? Como é que estas mulheres se sentem ignoradas em Portugal? Mais vale emigrar para o Texas, ao menos todo mundo civilizado anda a defender os direitos de quem lá está.

1 comentário:

  1. É certo que o que se passa nos EUA se torna conhecido no resto do mundo, porque os EUA dominam os meios de comunicação à escala global. Também por isso, são a vanguarda em muitos assuntos e, quando se vêem retrocessos, isso gera temor na Europa. (Felizmente, na pena de morte, há uma separação higiénica.)

    Portugal é um país minúsculo, à escala dos EUA e mesmo do Texas. Pedir a uma mulher de uma zona remota de Portugal que se desloque a Lisboa ou ao Porto significa menos horas de caminho do que pedir a alguém do Texas que vá a outro estado. Isto faz diferença para pessoas pobres ou muito fragilizadas, por exemplo, por uma violação.

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