O conhecimento mínimo que se deve ter dos EUA é que são uma imensa manta de retalhos, dado que há competição por poder entre o governo federal, o governo dos estados, e o governo local (cidades e condados). Para além disso, a Comunicação Social, o chamado quarto poder, é muito poderosa e tão eficaz que andam portugueses a fazer campanha contra o Texas nas redes sociais. Finalmente, a sociedade civil americana é muito activa e por isso anda tudo frequentemente à batatada. O próprio Texas é um estado muito heterogéneo: há sítios muito progressivos, bem mais progressivos do que Portugal, por exemplo, e outros bastante conservadores.
Como dizia a Ruth Bader Ginsberg, "Real change, enduring change, happens one step at a time," o que é ainda mais pungente nos EUA onde, para se mudar alguma coisa, é preciso muito esforço dada a fragmentação do poder. A realidade é que as coisas mudam e, quando mudam, já foram sujeitas a tanto escrutínio e a tantos desafios que é difícil desfazer o que já foi feito. Há décadas que se tenta repelir Roe vs. Wade, a decisão do Supremo Tribunal que concede às mulheres o direito ao aborto, e o caso ainda sobrevive, apesar do suspense contínuo.
Decidi fazer uma pesquisa acerca do aborto em Portugal e a situação não é assim tão diferente de muitos sítios na América, inclusive o Texas. Resume-se assim, de acordo com o abstracto de um estudo do Miguel Areosa Feio, publicado em 2021, no Sociologia: Problemas e Práticas:
A despenalização do aborto previu eliminar os abortos clandestinos, embora ainda existam barreiras ao aborto seguro que afetam mais as mulheres desfavorecidas: objeção de consciência, prazos demasiado curtos para o procedimento, períodos de reflexão obrigatórios ou a estigmatização. Foi investigada a relação entre a formulação legislativa e a sua implementação, sendo que eventuais discrepâncias atestam a falência parcial dos seus objetivos. Foram analisados os dados quantitativos da DGS e qualitativos provenientes de entrevistas e focus group com especialistas e profissionais de saúde. As evidências produziram orientações para debates futuros.No artigo mesmo, esta parte é de salientar:
Em Portugal existem hospitais em que a generalidade dos profissionais de saúde habilitados para a realização de IG declararam objeção de consciência (Chavkin, Leitman e Polin, 2013), aspeto que se concretiza nas regiões de Lisboa e Vale do Tejo, Açores, Alentejo e nos distritos de Castelo Branco e Guarda por constrangimentos no funcionamento das consultas (DGS, 2016, 2018, 2019; Stifani, Vilar e Vicente, 2018). Nestes casos, o procedimento passa pelo encaminhamento para serviços privados, o que, na grande maioria das situações acontece para o centro da cidade de Lisboa, independentemente da zona de residência da mulher, numa manifesta iniquidade na garantia plena do direito à saúde em situações de aborto.Esta é a realidade portuguesa, o que me leva a pensar nas mulheres portuguesas a quem a lei portuguesa falha e que vêem a campanha que se faz em Portugal para mudar o Texas -- ou será para enxovalhar? Como é que estas mulheres se sentem ignoradas em Portugal? Mais vale emigrar para o Texas, ao menos todo mundo civilizado anda a defender os direitos de quem lá está.
É certo que o que se passa nos EUA se torna conhecido no resto do mundo, porque os EUA dominam os meios de comunicação à escala global. Também por isso, são a vanguarda em muitos assuntos e, quando se vêem retrocessos, isso gera temor na Europa. (Felizmente, na pena de morte, há uma separação higiénica.)
ResponderEliminarPortugal é um país minúsculo, à escala dos EUA e mesmo do Texas. Pedir a uma mulher de uma zona remota de Portugal que se desloque a Lisboa ou ao Porto significa menos horas de caminho do que pedir a alguém do Texas que vá a outro estado. Isto faz diferença para pessoas pobres ou muito fragilizadas, por exemplo, por uma violação.