sábado, 8 de dezembro de 2012

Re: Cartas transatlânticas

Respondendo ao desafio que me foi lançado pelo meu amigo Fernando Alexandre num dos comentários ao meu artigo publicado em “Destreza das Dúvidas”, titulado “Cartas Transatlânticas”, aqui estou eu, sentado no outro lado do Atlântico, procurando arredondar umas ideias sobre a minha experiência de leitura nos chamados e-books ou, para me exprimir mais portuguesmente, nos livros de suporte electrónico, cujas marcas me dispenso de nomear, por via de alguma publicidade enganosa que possa vir a fazer sem ganhar um cêntimo… Em primeiro lugar, o peso e as medidas do utensílio, cerca de cento e poucos gramas, as dimen­sões ainda mais pequenas do que a página de um livro, o que evita tendinites e outras desgraças termina­das em ite (não con­fundir com o final da missa, no santo tempo em que ainda era gargan­teada em Latim, ite missa est, cuja versão livre se vertia num grande refrigério para certos infiéis como eu, e traduzida à letra por dita missa esta, como certo beatério, versado no latinó­rio e em suas declinações trasladava para vernáculo lusitano), mas, e retomando o fio à meada das palavras acabadas em ite, temos também capsulite e artrite derivado do peso do calhamaço ou do dicionário; rinites alérgicas, no tocante aos narizes avessos ao secular pó cientifico-cultural arraigado nos livros e tratados de alta erudição da gasparina figura, não con­tando com a fragrância à tinta de impressão, que nenhum bem fazia aos trabalhadores das velhas tipografias, atreitos a sofrer de uma doença exclusiva e cujo nome me não ocorre neste instante: actualmente, e sobretudo para quem lê pouco e finge o contrário, o cheiro e a tactilidade do livro provocam-lhe a impressão de palpar um corpo perfumado de mulher retrovertido em Kama­sutra, numa saborosa sensação plena de graça e deleite… Muitos leitores ainda não afei­tos aos mecanismos modernos deste mundo semovente principiam já a enrolar-se no cobertor de papa de uma saudade que há-de esvanecer-se com o matiz do tempo, pois tudo passa, até o mais evocado aroma, cheiro ou cheirete; há ainda as conjun­ti­vites, residentes nos olhos mais sensíveis e lacrimejantes que se fatigam a ler em corpo de letra pouco ade­quado à sua conjuntiva ou conjuntura ocular, o que os leva a apa­gar a luz logo às primei­ras frases, por já não aturarem os ardo­res que a leitura pro­voca… No livro com suporte electrónico não se contraem inflamações terminadas em ite. O bom ecrã não reenvia qualquer brilho aos olhos, por isso a conjuntivite não tem emprego como tantos milhares de portu­gueses ou milhões de espanhóis, além de que se pode aumentar o corpo de letra, não sendo necessária a lupa ou o binóculo; em sua espessura de vespa contém milhares de calhamaços, sem qual­quer odor, quer sejam livros velhos ou acabados de sair da tipo­grafia; só pesam exac­tamente o que pesa o suporte, tenha ele só um livro ou milhares deles; quanto a tendinites, o mesmo se aplica ao que se escreveu para a conjuntivite: não há volume, grosso ou fino, que tenha peso: a insustentável leveza do ser livre ou livro, que neste caso pesa pouco: cento e poucos gramas; o dicionário que outrora se encontrava à mão, ou sobre a mesi­nha-de-cabeceira, já não prega as suas partidas com seu peso desmedido, nem cai desam­parado no chão, descadeirando-se nos seus milhares de palavras: está preso, salvo seja, dentro do suporte do livro electrónico, bas­tando, para o consultar, pôr o cursor atrás do vocábulo cujo sig­nificado se não sabe, e logo aparece a definição da palavra, a sua etimologia e exemplos de como se pode empregá-la nas suas diversas acepções e contex­tos: já não há justificação para se ter horror a esse cemitério de palavras, como um dia lhe chamou o grande escritor Miguel Torga; há escritores que fazem gala em afirmar que nunca ou raramente usam o tira-teimas, o nome que os tipógrafos davam aos dicionários, mas, isso, não será mais do que fogo-de-artifí­cio, tudo para que haja a espantação por parte do interlocutor de que tal génio genuíno conseguiu domar as palavras quase todas e transformá-las em cordeirinhas dóceis e obedientes; estou prestes a concluir, Fernando Alexandre. Só me faltam dois itens: a leveza de carregar, para onde quer que se vá, uma biblio­teca de milhares de volumes, no bolso, na pasta, no saco de via­gem, e escolher o ou os que mais me apetece ler, poesia, romance, ensaio, teatro, ciência, economia e tudo quanto numa biblioteca. Quanto ao segundo item, vou passar a prosa a Eça de Queirós, que no seu magnífico romance, As Cida­des e as Serras, anteviu a nossa era de tecnologia de ponta. Vale bem a pena ler esse romance, como de resto todos os livros escritos pelo melhor ou dos melhores escritores portugueses. Aí vai, pois, a transcrição de um passo do citado romance:
Não se abria um armário sem que de dentro se despenhasse, desamparada, uma pilha de livros! Não se franzia uma cortina sem que de trás surgisse, hirta, uma ruma de livros! E imensa foi a minha indignação quando uma manhã, correndo urgentemente, de mãos nas alças, encontrei, vedada por uma tremenda colecção de Estudos Sociais, a porta do WC!
Só pude, daqui de tão longe citar Eça, porque trouxe comigo a minha biblioteca ambulante. Não é isto uma maravilha? “E quem não há-de admirar os progressos do nosso século (XIX)”, dizia uma personagem do Eça. Só é triste não se poder aplicar tal frase aos dias de hoje… Não admira! Os cavacos e os coelhos e os gaspares e outros irracionais sentaram-se em cima do País e tomaram conta de nós!

2 comentários:

  1. Que belo texto. Muito obrigado Cristóvão - fico contente por ter contribuído ao desafiá-lo. No seu texto sobre a transição da escrita à mão para o computador a passagem que mais gostei foi aquela em que refere que não podia ter uma folha rasurada - quando isso acontecia tinha de passar tudo a limpo novamente. Não surpreende por isso as vantagens que identifica no e-book. E acaba com uma citação do Eça de A Cidade e as Serras (romance que também muito aprecio - em que o deslumbramento com a modernidade e a técnica vai dando lugar a novo olhar, conservador em demasia para alguns, sobre Portugal), que levou consigo no seu kindle. Eu também gosto muito do meu. E gostei mesmo muito deste seu texto lido no ecran do meu portátil.

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  2. Obrigada, Cristóvão de Aguiar. Viverá.

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