Respondendo ao desafio que me foi lançado pelo meu amigo Fernando
Alexandre num dos comentários ao meu artigo publicado em “Destreza das
Dúvidas”, titulado “Cartas Transatlânticas”, aqui estou eu, sentado no outro
lado do Atlântico, procurando arredondar umas ideias sobre a minha experiência
de leitura nos chamados e-books ou, para
me exprimir mais portuguesmente, nos livros de suporte electrónico, cujas marcas
me dispenso de nomear, por via de alguma publicidade enganosa que possa vir a fazer
sem ganhar um cêntimo… Em primeiro lugar, o peso e as medidas do utensílio,
cerca de cento e poucos gramas, as dimensões ainda mais pequenas do que a
página de um livro, o que evita tendinites e outras desgraças terminadas em ite (não confundir com o final da missa,
no santo tempo em que ainda era garganteada em Latim, ite missa est, cuja versão livre se vertia num grande refrigério
para certos infiéis como eu, e traduzida à letra por dita missa esta, como
certo beatério, versado no latinório e em suas declinações trasladava para
vernáculo lusitano), mas, e retomando o fio à meada das palavras acabadas em ite, temos também capsulite e artrite derivado
do peso do calhamaço ou do dicionário; rinites alérgicas, no tocante aos
narizes avessos ao secular pó cientifico-cultural arraigado nos livros e
tratados de alta erudição da gasparina figura, não contando com a fragrância à
tinta de impressão, que nenhum bem fazia aos trabalhadores das velhas
tipografias, atreitos a sofrer de uma doença exclusiva e cujo nome me não
ocorre neste instante: actualmente, e sobretudo para quem lê pouco e finge o
contrário, o cheiro e a tactilidade do livro provocam-lhe a impressão de palpar
um corpo perfumado de mulher retrovertido em Kamasutra, numa saborosa sensação
plena de graça e deleite… Muitos leitores ainda não afeitos aos mecanismos
modernos deste mundo semovente principiam já a enrolar-se no cobertor de papa
de uma saudade que há-de esvanecer-se com o matiz do tempo, pois tudo passa,
até o mais evocado aroma, cheiro ou cheirete; há ainda as conjuntivites, residentes
nos olhos mais sensíveis e lacrimejantes que se fatigam a ler em corpo de letra
pouco adequado à sua conjuntiva ou conjuntura ocular, o que os leva a apagar
a luz logo às primeiras frases, por já não aturarem os ardores que a leitura
provoca… No livro com suporte electrónico não se contraem inflamações
terminadas em ite. O bom ecrã não reenvia
qualquer brilho aos olhos, por isso a conjuntivite não tem emprego como tantos
milhares de portugueses ou milhões de espanhóis, além de que se pode aumentar
o corpo de letra, não sendo necessária a lupa ou o binóculo; em sua espessura
de vespa contém milhares de calhamaços, sem qualquer odor, quer sejam livros
velhos ou acabados de sair da tipografia; só pesam exactamente o que pesa o suporte,
tenha ele só um livro ou milhares deles; quanto a tendinites, o mesmo se aplica
ao que se escreveu para a conjuntivite: não há volume, grosso ou fino, que
tenha peso: a insustentável leveza do ser livre ou livro, que neste caso pesa
pouco: cento e poucos gramas; o dicionário que outrora se encontrava à mão, ou
sobre a mesinha-de-cabeceira, já não prega as suas partidas com seu peso
desmedido, nem cai desamparado no chão, descadeirando-se nos seus milhares de
palavras: está preso, salvo seja, dentro do suporte do livro electrónico, bastando,
para o consultar, pôr o cursor atrás do vocábulo cujo significado se não sabe,
e logo aparece a definição da palavra, a sua etimologia e exemplos de como se
pode empregá-la nas suas diversas acepções e contextos: já não há justificação
para se ter horror a esse cemitério de palavras, como um dia lhe chamou o
grande escritor Miguel Torga; há escritores que fazem gala em afirmar que nunca
ou raramente usam o tira-teimas, o nome que os tipógrafos davam aos dicionários,
mas, isso, não será mais do que fogo-de-artifício, tudo para que haja a
espantação por parte do interlocutor de que tal génio genuíno conseguiu domar
as palavras quase todas e transformá-las em cordeirinhas dóceis e obedientes;
estou prestes a concluir, Fernando Alexandre. Só me faltam dois itens: a leveza
de carregar, para onde quer que se vá, uma biblioteca de milhares de volumes,
no bolso, na pasta, no saco de viagem, e escolher o ou os que mais me apetece
ler, poesia, romance, ensaio, teatro, ciência, economia e tudo quanto numa
biblioteca. Quanto ao segundo item, vou passar a prosa a Eça de Queirós, que no
seu magnífico romance, As Cidades e as
Serras, anteviu a nossa era de tecnologia de ponta. Vale bem a pena ler
esse romance, como de resto todos os livros escritos pelo melhor ou dos
melhores escritores portugueses. Aí vai, pois, a transcrição de um passo do
citado romance:
Não se abria um armário sem que de dentro se despenhasse, desamparada, uma pilha de livros! Não se franzia uma cortina sem que de trás surgisse, hirta, uma ruma de livros! E imensa foi a minha indignação quando uma manhã, correndo urgentemente, de mãos nas alças, encontrei, vedada por uma tremenda colecção de Estudos Sociais, a porta do WC!
Só pude, daqui de tão longe citar Eça, porque trouxe comigo a minha biblioteca ambulante. Não é isto uma maravilha? “E quem não há-de admirar os progressos do nosso século (XIX)”, dizia uma personagem do Eça. Só é triste não se poder aplicar tal frase aos dias de hoje… Não admira! Os cavacos e os coelhos e os gaspares e outros irracionais sentaram-se em cima do País e tomaram conta de nós!
Que belo texto. Muito obrigado Cristóvão - fico contente por ter contribuído ao desafiá-lo. No seu texto sobre a transição da escrita à mão para o computador a passagem que mais gostei foi aquela em que refere que não podia ter uma folha rasurada - quando isso acontecia tinha de passar tudo a limpo novamente. Não surpreende por isso as vantagens que identifica no e-book. E acaba com uma citação do Eça de A Cidade e as Serras (romance que também muito aprecio - em que o deslumbramento com a modernidade e a técnica vai dando lugar a novo olhar, conservador em demasia para alguns, sobre Portugal), que levou consigo no seu kindle. Eu também gosto muito do meu. E gostei mesmo muito deste seu texto lido no ecran do meu portátil.
ResponderEliminarObrigada, Cristóvão de Aguiar. Viverá.
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