36. Disse dizem moribunda e bela ai que eu morro D. Urraca a Nova, que não era a outra, era ela.
Sabendo, pois, que morria, disse-o, e ouviu-a a aia, o confessor, o marido, o pai, os cinco filhos, esses querubins, a pasteleira, que por acaso passava a saber se lhe iam bem uns almendrados, o notário, chamado pela prima não fosse a defunta breve esquecer-se dela nos legados, a prima, assim obriga o zelo pelo interesse, o moço da estrebaria trazendo novas do cavalo preferido, o cavalo ele mesmo, que por ele falariam os dentes, uma bisavó esquecida num quarto poeirento, capaz ainda de cobiçar os dentes do cavalo assim que ouviu a oferta dos almendrados da pasteleira, já que era também ainda capaz de ouvir, e sem auxílios, mais rija que a Nova era esta que era também Urraca, mas não a Velha, antes a Vetusta, a Macróbia, a Antiga, tão esquecida fora por todos que nem cognome já tinha e a Velha, D. Urraca a Velha, era outra e não ela. Ouviram a Nova o tratador de pavões, viera anunciar que os gritos desditosos dos pássaros soavam mais desditosos ainda, pensou o pobre que assim confortaria a expirante, a modista, viera para as provas do vestido funéreo, o último vestido, era tal o peso das pérolas, por ser o último, que acompanharam a modista quatro rapagões habituados a levantar à força de músculo carroças de bois e arados de ferro, mais quatro então que ouviram D. Urraca a Nova e o seu derradeiro suspiro. Ouvido igualmente pela criada, que viera espevitar o lume da lareira, e pelo cozinheiro, que inquiria pelos desejos finais da morrediça, e pela lavadeira, que perguntava se estavam brancas a gosto as peças de linho e fragrantes a contento os lenços de seda. E por uma segunda criada, que viera abrir cortinas e reposteiros, e uma terceira, pronta a afofar as almofadas. O sobrinho que trouxe um copo de água, o cangalheiro que se certificava das medidas, um estudante, meditando sobre quão efémera é a existência tanto que mais é um nada do que alguma coisa, mas pode o nada não ser alguma coisa, que diria Escoto, ou Marco Aurélio, este pelo menos tentaria satisfazer a nossa necessidade de consolo, tentaria, pois, o impossível, pode alguma coisa ser impossível se é alguma coisa. E, claro está, o médico. É preciso uma multidão para morrer convenientemente.
No meio da confusão, isto sabe muito bem. Obrigada...
ResponderEliminarQue bom, Rita, obrigada!
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