quarta-feira, 11 de maio de 2016

História gótica


62. O caderno de Ada, aquele de capa de veludo verde que o farmacêutico abriu, não foi por acaso que Ada escolheu a capa verde.
Porque o que ele contém é vermelho, ainda que escrito com tinta preta. Estão dentro dele escritas as torrentes de sangue contadas pelas testemunhas. Vermelho suficiente. Daí, o verde da capa. Também é uma forma de camuflagem. Quem vir uma capa verde de veludo não adivinhará nunca o que lá está. As conjecturas dos curiosos serão, desabafos desesperados de amores não correspondidos, com as lágrimas doridas que os acompanham enrugando o papel, efusão de sentimentos correspondidos, com as lágrimas respectivas desta vez alegres, aspirações de viagens e aventuras, poemas preferidos, citações de escritores de que se admira o espírito ou a profundidade ou a argúcia ou que digam da maneira mais justa aquilo que gostaríamos de ter dito e é como se nos compreendessem, descrições dos encontros que tivemos e antecipações dos que vamos ter, anotação dos compromissos da semana ou do mês, entusiasmos, eflúvios de má língua e observações maldosas que é preciso manter secretos, recriminações, arrependimentos, contrições, saudades, melancolia, receitas, tentativas literárias, ensaios do que devíamos ter dito e do que devíamos ter feito, planos para o futuro, recordações do passado, fixações do presente. Ou flores secas ou retratos ou desenhos. Mas sangue, não. Torrentes, nunca. Em nenhum momento as caras destroçadas e os olhares inertes. O que está no caderno de Ada não pode ser imaginado. Só pode ter acontecido, só pode ser um facto.Tê-lo registado exigiu uma linguagem nova, outro alfabeto, escrever sem uma direcção constante, incoerência, mão firme, estômago. E Ada só conseguiu preencher página após página e assistir ao correr do sangue que as ia encharcando porque tinha um fim. Encontrar a irmã sobrepunha-se à repulsa. Não se demorava em cada gota de sangue, avançava. Ainda que à gota de sangue se seguisse outra e outra ainda até se formar o maior dos oceanos. Uma coisa da ordem do prodígio e da natureza da fábula sucedia, porém. As mãos de Ada mantinham-se brancas. Valodu e Groesken também tinham mãos brancas e também tinha cada um o seu caderno. E um fim com que resistiam ao asco. E muito silêncio, muita prudência, muito cuidado. Ada acordara exclamando "Já sei!". O que ela já sabia era como penetrar no castelo sem que alguém os visse, agarrasse, arrastasse e fizesse o que quer que fosse que era feito a quem lá entrava. Teria que ser levado a cabo de dia, o erro de tantos que tinham tentado o mesmo sem sucesso fora presumirem que seria mais fácil levá-lo a cabo de noite. É natural pensar que as coisas que queremos secretas devem ser feitas à noite. Afinal, é quando tudo está mais escondido, é quando é mais difícil ver. Mas o que é natural não podia aplicar-se neste caso. Os habitantes do castelo não eram naturais.

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