95. À medida que procuravam entre os papéis rasgados
aqueles que lhes interessavam, iam-se apercebendo de que não conseguiriam
completar os fragmentos que transportavam consigo há tanto tempo.
Tinham mexido
e remexido várias vezes no monte amarelado e cinzento que lhes tinha caído aos
pés, mas faltava sempre alguma coisa. Se soubessem que no fundo de uma arca de
carvalho pesado estavam guardados ainda mais papéis, os que faltavam para que
se resolvessem os três quebra-cabeças, e vários mais, a julgar pela dimensão da
pilha que iam revirando, teriam parado de procurar ali e de confundir braços e
vestidos e caligrafias. Queriam juntar tudo, queriam que tudo encaixasse.
Queriam tanto que estavam sempre a suster a respiração ou a chamar os outros
dizendo, já está! Tanto que davam razão àquele que exclamara e só um segundo
exame lhes revelava que a figura que parecia fazer finalmente sentido era uma
quimera ou um unicórnio, com um pé desencontrado ou uma cabeça demasiado grande
para o resto do corpo. Foram fabricando sereias e sátiros, ciclopes e gárgulas,
cérberos e licantropos. Seres para os quais não havia nomes porque nunca antes
tinham existido. Ou que não eram conhecidos porque só tinham existido em
pesadelos. Aberrações nórdicas medonhas e brutas, mas também figuras meridionais
etéreas e tentadoras. As cores deixaram de significar e de se distinguir, as
formas perderam os contornos, as quantidades perderam a ordem, no espaço tudo
perdeu a relação. As coisas não eram mais fáceis no que respeitava às cartas.
Começaram por procurar caligrafias semelhantes, a semelhança em breve se tornou
irreconhecível. Tentaram categorias de grão de papel, o peso a certa altura era
sempre o mesmo ou era sempre diferente. Experimentaram as cores das tintas,
todas assumiram o mesmo tom ocre e a mesma imprecisão baça. Não tiveram melhor
sorte quando decidiram procurar as palavras e as frases que completariam cada
palavra e cada frase que um rasgão deixara incompleta. Textos ilegíveis, tal
era a estranheza do que diziam, sucediam-se a parágrafos trágicos e passagens
líricas. Os versos belos deslumbravam, os disformes suscitavam crítica, os
cómicos arrancaram-lhes as primeiras gargalhadas desde os eventos que os tinham
trazido ao castelo, de repente chega a hórrida notícia: os Iberos, depois que
Árrio para lá fora, Iberos já não eram, eram 'Íberos'. Construíram peças
inteiras, com três actos e múltiplas cenas. Os personagens densos dos romances
alternavam com tipos de histórias satíricas e alegorias de sermões. Escreveram
diálogos e tratados. Contos curtos e poemas longos. As gestas, os épicos, as
fantasias históricas, os artigos científicos e os artigos de jornal, não houve
dia de que não houvesse notícias, a da mãe que perdeu num incêndio os filhos, a
do explorador que chegou onde aspirava, a da linha férrea inaugurada, a da
estátua a pedir reparação. As recensões críticas não faltaram, uma delas dizia
que o livro em causa era a melhor defesa que alguém poderia ter argumentado das
virtudes do analfabetismo. As histórias infantis e os tomos de biografias. A
bíblia inteira. Os vedas. O corão. Os cento e vinte dias de sodoma. A lista de
compras de um ajudante de cozinheiro e a lista de objectos que um egípcio
antigo quis que o acompanhassem no reino dos mortos. Leis e constituições.
Exames. Receitas. Se tivessem aprendido com o labirinto que estavam sempre no
mesmo lugar ao mesmo tempo que podiam vir estar num lugar diferente, Ada,
Groesken e Valodu teriam pedido à criança, ou a Dimitri, que os conduzisse à
cela do Confessor, onde a arca de carvalho pesado aguardava que a abrissem
havia séculos.
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