sexta-feira, 29 de julho de 2016

Roubos e derrubes

Há cerca de duas semanas que andamos entretidos de novo com a questão da legitimidade da Geringonça. Sinceramente, já cansa. Tudo devido a uma entrevista de Pedro Passos Coelho, onde este considerava que a legislatura lhe havia sido roubada. O DN fez manchete com a declaração. O PSD fez banners na Internet. As redes sociais e caixas de comentários, como sempre, inflamaram. Luís Aguiar-Conraria escreveu dois artigos no Observador a explicar como António Costa deveria ser primeiro-ministro porque é o vencedor de Condorcet. Duas semanas de discussão infértil redundaram, contudo, num desmentido do próprio DN. O jornal publicou ontem um post scriptum em editorial dizendo que havia feito uma transcrição incorrecta das palavras de PPC. Assim, onde se lia “roubou” dever-se-ia ler “derrubou”. Os desvãos fonéticos da língua de Camões... De facto, ouvindo o áudio da TSF, podemos ouvir claramente “derrubou”. No entanto, temo que o erro analítico de Passos Coelho (e de muitos outros) continue presente.

Assim, face aos últimos 10 meses de discussão política em Portugal, creio ser necessário esclarecer alguns pontos sobre o funcionamento institucional de uma democracia semi-presidencial para clarificar o modo como se formam governos e o quão inadequado é utilizar o critério de Condorcet neste contexto.

1. As eleições gerais não são sobre a eleição de um executivo ou de um primeiro ministro. São eleições nas quais os eleitores delegam poder para os representantes agirem em seu nome, numa legislatura (parlamento).

2. No nosso sistema, os partidos são particularmente fortes como unidades organizativas, por razões constitucionais, institucionais, históricas, etc. Aliás, quando vamos votar, votamos em símbolos de partidos. Os partidos não só têm o monopólio da selecção dos candidatos, como têm a capacidade (cada vez mais rara na Europa) de manter a lista fechada, i.e., impedir qualquer tipo de personalização e competição intra-partidária. Estamos, pois, sujeitos aos benefícios e malefícios de um ambiente predominantemente partidário, onde as estratégias das lideranças têm um papel forte na determinação dos outputs políticos, incluindo a função representativa que mencionei no ponto anterior.

3. Os processos de formação de governo nas democracias de base parlamentar são feitos no parlamento, com regras próprias estabelecidas pela CRP e pelo Regimento da AR. Isto significa que a mesma composição parlamentar pode dar origem a múltiplas constelações governativas. Se o PS tivesse escolhido fazer um acordo parlamentar com o PSD e CDS, ou apenas com PSD, encabeçado ou não por Passos, esse governo e esse primeiro-ministro teriam exactamente a mesma legitimidade que o actual governo. Isto independentemente de quem nós achamos ser o vencedor de Condorcet à data das eleições. O objectivo do nosso sistema não é obter um primeiro-ministro através do critério de Condorcet. A obtenção de um primeiro-ministro é simplesmente uma consequência da formação do governo.

4. Portugal encontra-se ainda numa situação bastante primária quanto ao entendimento dos processos de formação e queda de governo. Esta é uma das funções do parlamento. É muito comum noutras democracias existirem mudanças de governo sem eleições e, com as mudanças de governo, de PM. É, de facto, mais comum do aquilo que se pensa (basta passar os olhos em bases de dados internacionais como ParlGov). Para além disso, em Portugal, existe ainda um (potencial) escolho adicional ao sistema: o Presidente da República tem também uma papel decisivo na formação e queda de governo. Compete a este órgão agir como informateur (aquele que convida o formateur para formar governo), tendo, pois, capacidade de, numa primeira fase, constrangir decisivamente o menu de escolhas disponível. Pensando simplesmente num restaurante: quando nos sentamos podemos escolher dentro do menu, mas previamente alguém teve a possibilidade de escolher aquilo que nós podíamos escolher.  Da mesma forma, o parlamento só pode aprovar ou derrubar um governo cuja formação tenha sido indicada pelo Presidente.

Esclarecido o contexto institucional em que nos encontramos, estamos agora em condições de analisar as declarações de PPC e de muitos outros, ao longo dos últimos meses.

5. Tudo isto significa que não há “roubos” porque ninguém, antes da votação parlamentar do programa de governo, tem o direito a governar.

6. Nenhum governo “derruba” outros governos, como Passos Coelho sugeriu. É a legislatura que o faz. A questão não é meramente semântica. Não só a legislatura é um órgão independente do executivo, como tem funções diferentes. Uma legislatura é simultaneamente um microcosmos que representa a sociedade e um palco de estratégias dos vários partidos que nela figuram. É a conjugação destas duas coisas que pode, facilmente, levar a uma reorganização de forças no parlamento, consoante as circunstâncias se alteram. Como produto dessa reorganização, teremos uma queda de um governo e formação de outro.

7. Nenhum governo tem “a obrigação de cumprir o mandato até ao fim”, como PPC também afirmou. Nem sequer compete ao governo decidir sobre a sua própria sobrevivência. Compete à legislatura e, num regime semipresidencialista, compete simultaneamente ao presidente, que pode dissolver a assembleia e marcar novas eleições, embora não controlando a relação e a organização de forças na nova assembleia.

7 comentários:

  1. Os partidos de esquerda já perceberam como o sistema funciona, ajudados pelos resultados eleitorais. Os partidos de direita perceberäo se e quando lhes der jeito, até lá mitificam e distorcem e contorcem-se o mais que podem. Se o espectro partidário e os resultados eleitorais tivessem sido simétricos, possivelmente seriam os partidos de esquerda a fazer estas tristes figuras.

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  2. É a telenovela da minúcia. Portugal tem na essência da sua política a típica conversa de bêbado, começa-se com um assunto aparentemente importante e acaba-se a discutir "foste tu que disseste efectivamente primeiro do que eu, meu pulha, pede já desculpa". Depois, junte-se a isso a suposta silly season, que deveria ser estendida a todo o ano (separando-se apenas por quente e fria), e temos um não assunto para dar e vender. O exemplo máximo do que digo é que tanto se defendeu/discutiu o "roubo" como se defende/discute agora o "derrube" - o que interessa é falar.

    Em outras alturas assuntos realmente importantes como a sustentabilidade da segurança social, modelos económicos, a emigração, etc, foram sempre perdidos para semânticas, fait divers e outras questões com zero interesse, que só serviam para os memes, para os Eixos do Mal da vida, piadas recorrentes na internet e até como moleta para discursos de políticos mal preparados que tratam os seus eleitores como parvos. É assim, esperar mais que isso era pedir demasiado da nossa capacidade de ser sérios com situações sérias e esperar que quem nos ouve também o queira fazer, sinceramente não me parece que estejamos preparados para nenhuma das hipóteses.

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  3. Tem razão.

    A democracia representativa e a própria democracia não foram bem aprendidas por uma parte grande da população portuguesa em quaisquer escolarizações e nunca compreendi bem porquê, uma vez que me parece ser uma aquisição bastante simples numa população como a nossa, sempre que tenha aprendido a defender-se dos castigos cármicos e de quem vive deles.

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  4. A nível do eleitorado, creio que parte do problema é que grande parte da pessoas estava mesmo convencida que as eleições eram para escolher um primeiro-ministro; note-se que não era uma questão de acharem que ia ser cumprida a tradição de o partido mais votado formar governo, era mesmo uma questão de acharem que a lei era mesmo essa - uns dias antes das eleições (até porque já desconfiava que o desfecho poderia ser este, e achei melhor começar a preparar já as massas para aceitarem a aliança de esquerda) até estive a explicar a uma colega minha (que já votava quando eu ainda só pensava na Abelha Maia) o que é que se ia votar nestas eleições, e como é que era escolhido e governo, e como os votos se transformavam em deputados, e ela estava genuinamente surpreendida ("Quer dizer que estas eleições são para escolher deputados? E esses deputados depois é que vão escolher o governo?", perguntava-me ela).

    O hábito de em português coloquial se chamar "ganhar as eleições" a ter sido o partido mais votado também contribui para a confusão (ou será, pelo contrário, resultado dela?). Noutros países ganhar/triunf/derrota não parece ser usado dessa maneira:

    http://www.bbc.com/news/world-europe-24014551

    https://www.theguardian.com/world/live/2015/jun/18/denmark-general-election-2015-results-live

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    1. "A nível do eleitorado, creio que parte do problema é que grande parte da pessoas estava mesmo convencida que as eleições eram para escolher um primeiro-ministro; note-se que não era uma questão de acharem que ia ser cumprida a tradição de o partido mais votado formar governo"

      Isso é uma falácia. Essa foi a forma que os spindoctors da esquerda venderam aos portugueses - chamando de burros a quem votou à direita - de explicar a ambição e salvação política em forma de cambalhota que o PS fez à tradição em Portugal e ao entendimento ao centro, já para não falar da novidade socialista de se coligar com os únicos partidos em Portugal que querem a sua destruição como partido (o PSD/CDS só quer o seu lugar de tempos a tempos).

      As pessoas não são assim tão parvas como as pintam, até a minha avó de 92 anos sabe disso.

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    2. "Isso é uma falácia. Essa foi a forma que os spindoctors da esquerda venderam aos portugueses - chamando de burros a quem votou à direita"

      O que é que isso tem a ver com ter votado à direita ou à esquerda (quase que aposto que a pessoa que falo no meu comentário até votou no PS)? Quando muito poderia dizer que isso era chamar de burro a quem se opôs à aliança PS/BE/CDU com o argumento que o PSD/CDS "ganhou as eleições" (sim, há uma correlação entre isso e ter votado na direita, mas não é obrigatória que assim o seja - p.ex., suponho que o Ribeiro e Castro tenha votado na direita, mas opôs-se a esse argumento).

      Claro que, neste momento, é impossível de provar se em setembro de 2015 havia uma proporção significativa de portugueses convencida que o partido mais votado tinha automaticamente o direito de propôr o primeiro-ministro (de qualquer forma, durante as semanas sem governo cheguei a ler no Facebook um artigo de um professor de direito argumentando que era ilegal o presidente da república nomear um governo sem o partido mais votado, logo não seria uma opinião assim tão minoritária) - não dá para fazer um inquérito de opinião sobre o assunto, já que agora toda a gente já sabe que não é assim.

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  5. Esta discussão tem muito pouco interesse e faz lembrar os bizantinos discutindo o sexo dos anjos, com os otomanos às portas de Constantinopla. Diria mesmo que faz lembrar as supostas discussões futebolísticas em Portugal, as quais giram, essencialmente, em torno de offsides, penalties e cartões.

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