Foi publicada em Diário da República a Resolução do
Conselho de Ministros (RCM) n.º 53/2016, de 21/9, a qual entra em vigor desde o
dia 8 do mesmo mês. É por demais conhecida a sua occasio legis, ou seja, as circunstâncias concretas que a
motivaram. Não nos interessa, aqui e agora, dedicar a nossa atenção à sua
análise, aliás já escrutinada politicamente, em várias sedes e, sobretudo, no
local próprio: a Assembleia da República.
Releva sim verificar
que existia um relativo vazio legal na matéria da aceitação de ofertas ou
vantagens por parte de membros do Governo ou de outros titulares de altos
cargos dirigentes da Administração Pública (AP). É evidente que as situações
mais graves já mereciam cobertura legal (penal, disciplinar e civil),
avultando, quanto à primeira, de entre outros, os crimes de corrupção,
peculato, concussão ou participação económica em negócio. Do mesmo passo, os
casos mais severos subsumem-se também a infracções disciplinares previstas na
Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas que, no limite, pode conduzir à pena
de demissão. Todavia, esta última Lei, em sentido estrito, não é, ao menos
directamente, aplicável ao Governo enquanto órgão de soberania e de condução
última da AP.
Registe-se que, através
da RCM n.º 18/93, de 17/3, em Executivo liderado por Cavaco Silva, foi adoptada
a Carta Deontológica do Serviço Público,
aplicável à Administração central, regional e local, prevendo como um dos seus
valores fundamentais o da integridade, proibindo os funcionários de, “pelo
exercício das suas funções, aceitar ou solicitar quaisquer dádivas, presentes
ou ofertas de qualquer natureza”. Sem grande explicação, já no Governo de
António Guterres, a RCM n.º 47/97, de 22/3, viria a revogar aquele diploma.
Assim, restavam os preceitos gerais enformadores do Código do Procedimento
Administrativo (CPA) que, logo em 1991 e, agora, com o novo de 2015,
estabelecem um conjunto de princípios gerais da actividade administrativa vinculativos,
de entre outros, para o Governo. Para o que aqui releva, sobressaem os
princípios da prossecução do interesse público, da boa administração e da
imparcialidade.
O novo Código de Conduta aplica-se não somente
aos membros do Governo (Primeiro-Ministro, Ministros, Secretários e
Subsecretários de Estado), mas também aos respectivos membros dos gabinetes.
Relevante é ainda a sua aplicabilidade a dirigentes e gestores de institutos e
empresas públicas, bem como a todos os dirigentes superiores da Administração
em relação aos quais o Governo exerce poderes de hierarquia e superintendência.
Mais urge a Resolução agora publicada a que os Ministros, nas suas áreas de
actuação, promovam a adopção de códigos de conduta sectoriais. Como é
reconhecido no preâmbulo do diploma, é essencial que toda a AP – central,
regional e local, directa, indirecta e autónoma ou independente – seja regulada
da mesma forma, embora tal seja matéria para a qual é essencial o concurso do
Parlamento no procedimento legislativo. Ninguém perceberia que não se
aproveitassem os tristes episódios recentes para empreender esta essencial
auto-regulação que se limita a corporizar o art. 266.º da Constituição, no
tocante à prossecução única do interesse público pela Administração. Esta é
como a “mulher de César”: a sua transparência e lisura têm de estar acima de
qualquer suspeita, sob pena de se minarem os alicerces do Estado de Direito e do
divórcio ainda maior com os cidadãos.
Para além da afirmação
de um conjunto de princípios gerais que já decorrem da CRP e do CPA, sem
prejuízo de outros títulos de responsabilidade, estabelece-se uma de tipo político
perante o Primeiro-Ministro ou o Ministro respectivo, consoante as hipóteses.
Não se podia ter ido mais longe e é de esperar que, no futuro, essa
responsabilidade se efective, o que só pode implicar a demissão do membro do
Governo que infrinja o Código. Deixa de haver espaço para titubear. Importante,
embora não inovador em face do CPA, é a declaração da existência de um conflito
de interesses actual ou potencial, o qual deve afastar o membro do Governo da
condução daquela matéria. O ponto mais saliente para a opinião pública diz
respeito à aceitação de ofertas e de convites ou benefícios similares. O
princípio geral é da sua não-aceitação, provenham de pessoas singulares ou
colectivas, nacionais ou estrangeiras, sejam os bens consumíveis ou duradouros,
“que possam condicionar a imparcialidade e a integridade do exercício” das
funções. Presume-se, sem possibilidade de prova do contrário, que há
condicionamento se as ofertas forem de valor igual ou superior a 150€, sendo
esse valor tido em conta ao longo de um ano civil, mas somente quanto a uma
dada pessoa singular ou colectiva. Isto significa que pode haver a aceitação,
por parte, p. ex., de dez empresas, por ano, de valores até esse limite. Não se
entende porque é que, quanto aos convites ou benefícios similares, esse valor é
só superior a 150€, devendo sê-lo também igual, como sucede nas ofertas.
Existem ainda excepções que contendem com a participação em eventos oficiais,
de representação do Estado, mas que reclamam, em nossa perspectiva, uma
interpretação restritiva, uma vez que são usadas cláusulas gerais que, se
aplicadas amplamente, podem contrariar os princípios enformadores de todo o
diploma. Importante é, por fim, a salvaguarda da aceitação de ofertas que
possam ser encaradas pelo doador como “quebra de respeito interinstitucional”,
nomeadamente quando falamos nas relações entre Estados. Nessas hipóteses, a
aceitação faz-se a benefício do próprio Estado e não do titular momentâneo do cargo,
sendo entregues na secretaria-geral do Ministério respectivo.
Apesar de um ou outro
aspecto menos bem conseguido, aqui analisado em extremo esboço, e ponto é que
se faça uma hermenêutica restritiva das excepções, este é, independentemente
das concretas circunstâncias que o motivaram, um Código no caminho certo, a
exigir um urgente complemento, por forma a vincular todos os órgãos, serviços e
agentes da Administração Pública.
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