“(…) [D]esaconselhar vivamente, para
não dizer proibir, que um jovem que manifeste essa orientação
homossexual ingresse no seminário, porque isso será, para ele e para o
que vier a seguir, seria sempre muito melindroso”. Estas são as exactas
palavras proferidas pelo Sr. Cardeal-Patriarca de Lisboa e Presidente da
Conferência Episcopal, no encerramento da Assembleia dos Bispos
Portugueses e que têm causado alguma polémica. Questionado sobre a
afirmação transcrita, no sentido de, implicando a vida sacerdotal a
castidade obrigatória, qual o interesse em indagar da orientação sexual
do candidato a seminarista, aquele prelado respondeu: “Se a pessoa tem
uma orientação forte nesse sentido, enfim, é melhor não criar a
ocasião…”.
Uma declaração de interesses: considero-me uma pessoa
cristã, mas há já alguns anos, por discordar de várias posições
defendidas pela Igreja (entre outras, voto de castidade obrigatório,
proibição do acesso das mulheres ao sacerdócio, uso de métodos
anticoncepcionais não naturais), não posso dizer-me católico. Para mim,
não existe a categoria de “católico não praticante”, nem defendo
religiões “take away”. Isto dito, as declarações do “Prémio Pessoa” 2009
causam-me grande perplexidade.
Compreendo que, em função de várias
passagens da Bíblia, sobretudo do Antigo Testamento, a Igreja Católica
não possa reconhecer o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas um
discurso discriminatório não cabe na infinita misericórdia divina com
que Cristo sempre se apresentou. Aliás, foi sempre nas margens da
sociedade, de entre os mais ostracizados, que Deus feito Homem gostou de
estar. Daí que, julgo, estas declarações colidem com a linha de
orientação do Papa Francisco. “Quem sou eu para condenar um
homossexual?”, respondia o Romano Pontífice a uma pergunta de um
jornalista nas habituais conversas no avião papal.
O Catecismo da
Igreja Católica, repositório da sua “doutrina oficial”, defende a
integração dos homossexuais nas comunidades crentes, pugnando por uma
compaixão quanto àqueles que considera sofrerem com essa orientação,
concedendo que possam intervir como leigos, desde que renunciem à
prática de relações sexuais. Em comparação necessariamente caricatural: é
como dizer a um portista que pode vir a uma reunião de benfiquistas,
desde que passe despercebido. Na verdade, convenhamos, uma posição que
alguns entendem de equilíbrio, mas que tenho por hipócrita.
Como
pouco séria foi a resposta de D. Manuel Clemente à pertinentíssima
pergunta da jornalista: se para se ser padre se assume voto de
castidade, qual o relevo da orientação sexual? “É melhor não criar a
ocasião…”. Mas que ocasião? Se o Sr. Cardeal se referia à possibilidade
de a carne ceder à tentação, eu e tantos outros conhecemos casos de
sacerdotes que mantêm relações amorosas com mulheres, perante uma quase
indiferença das comunidades em que se inserem. E então a castidade,
afinal, existe ou não? Sabemos que D. Manuel Clemente defende a
manutenção do status quo, mas também não se ignora que os discípulos de
Cristo foram casados e que esta regra resulta da Tradição e não
propriamente de imposições evangélicas. Aliás, quantos Papas não tiveram
filhos?
Outro aspecto: os candidatos ao sacerdócio devem ser
sujeitos a um escrutínio para detectar traços de homossexualidade,
pedofilia ou doença mental. As duas últimas merecem o aplauso de todos. O
mesmo se não dirá quanto ao seu alinhamento – o modo como surgem
enunciadas coloca tudo no mesmo saco, como se todos os homossexuais
fossem pedófilos e/ou doentes mentais. O DSM, uma espécie de manual de
diagnóstico das doenças psiquiátricas da Associação Americana de
Psiquiatria, retirou a homossexualidade do seu “Index Librorum
Prohibitorum” em 1973, mas a OMS só deixou de a considerar parte da
“lista internacional de doenças” em 1990. E este é um dado relevante: o
que disse e a forma como o fez, levam quem escutou D. Manuel a associar a
orientação sexual em causa com o abuso sexual de crianças ou delitos
próximos (uma vez que a “pedofilia”, como tal, não é nenhum tipo legal
de crime). Ora, essa é uma extrapolação inaceitável. Também existem
sacerdotes que mantêm relações sexuais com raparigas menores. Por certo
que manter a posição de que às mulheres está vedado o sacerdócio, para
usar a mesma expressão do Sr. Cardeal, também pode, em tese, “criar a
ocasião”, num ambiente marcadamente masculino, para mais não se
ignorando que a sexualidade humana é feita de muitos cinzas, havendo
estudos científicos que demonstram uma certa propensão para a
bissexualidade da espécie humana, que depois se desenvolve em diferentes
direcções em função, de entre outros, de caracteres sociais, culturais
ou de pertença a certos grupos de referência.
Gostaria de saber o
que responderia D. Manuel Clemente a um jovem que se sente profundamente
chamado por Cristo a servir a Igreja, mas que também é homossexual e
está disposto a cumprir o celibato. Um chamamento tão belo e que poderia
conduzir a um sacerdote esforçado em ser um exemplo terreno de Cristo.
“Filho, aqui entre nós, nos testes que faremos, finge que gostas de
mulheres!”. "Don’t ask, don’t tell".
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