domingo, 31 de julho de 2016

Península roubada

Ontem à noite, um grupo de quatro argelinos tentou fugir ao controlo de passaportes usando a pista do aeroporto. Este foi fechado e rapidamente se instalou o receio de que fosse o cumprimento da promessa reiterada do Daesh de recuperar a Península Ibérica. Parece que ainda não foi desta, mas é preciso compreender que o ISIS nunca vai aceitar que o Al-Andalus lhes tenha sido roubado por uma coligação dos reinos de Portugal, de Castela, de Leão, de Navarra e de Aragão, que, como se sabe, andavam sempre em batalhas uns contra os outros e só foram capazes de se entender para dar porrada nos mouros.

História gótica


100. Os guinchos estrídulos das criaturas desfazendo-se contra as paredes da cripta

sábado, 30 de julho de 2016

Sabor a Pokémon


Agora que se inicia a “silly season”, a recente febre da busca dos Pokémons é um valioso analisador do estado da nossa vida colectiva. Arrisco mesmo a dizer que este “desporto” é um interessante marco aplicável a diversas áreas.
De um prisma sociológico, crianças, jovens e adultos, de distintas proveniências sócio-culturais e económicas, saem de casa, facto assinalável no combate ao sedentarismo e à péssima forma de educar que assenta na televisão, videojogos e pouco ou nada favorece a interacção com os pares, excepto por via dos jogos “online”, que não permite a aquisição de competências relacionais essenciais numa altura precípua de formação da personalidade. Os mais velhos fazem quilómetros em busca de algo virtual, por vezes em hordas, o que necessariamente importa algum contacto com o outro. Não vou ao ponto de propor a Centeno um qualquer subsídio para este combate à sociedade do isolamento e do individualismo atroz. Longe de mim prejudicar o défice e a débil economia pátria…

Confiar assim...

Somewhere someone is traveling furiously toward you,
At incredible speed, traveling day and night,
Through blizzards and desert heat, across torrents, through narrow passes.
But will he know where to find you,
Recognize you when he sees you,
Give you the thing he has for you?
[..]

~ John Ashbery, At North Farm

Já foi há uns meses que, de manhã, assim que me levantei fui ao outro lado da cama e me inclinei para pegar no Alfred e o meter no chão. Como ele já tem 11 anos, doem-lhe as articulações e já lhe custa saltar e subir coisas. Era uma coisa que ele fazia tão naturalmente quando era pequenino que chegava a ser irritante. Mesmo quando lhe dávamos um raspanete, ele subia à mesa do café, ou ao sofá, para poder ficar mais alto e imponente. Sentia-se frustrado por não poder encarar-nos olhos nos olhos, à mesma altura que nós.

Nessa manhã, assim que me viu dirigir-me a ele, mudou de postura e ficou tão relaxado que, quando lhe peguei, fiquei tão surpreendida porque senti o seu completo à-vontade e o nível de confiança que depositava em mim. Depois pensei na última vez que eu tinha feito isso -- ficado assim, relaxada -- com uma pessoa e percebi que não o faço muito frequentemente.

Às vezes, acho que se diz mais no silêncio e através de gestos do que por palavras e sinto que muita gente deixou de prestar atenção aos gestos dos outros, à sua linguagem corporal. Mas o Alfred, quando olha para mim, vê acima de tudo os meus gestos e vê alguém em quem confia tanto que se pode dar completamente. Foi nesse dia que percebi o tamanho da confiança que ele tinha em mim.

Optimismo

Em 2013, participei numa conferência em Memphis e, por acaso, hoje encontrei algumas das notas que tirei. Estávamos ainda num período deprimido e as pessoas estavam bastante pessimistas acerca da economia americana. Um dos oradores foi bastante pessimista, ou talvez seja optimista: afinal, no final ele aconselhou ser pró-activo, em vez de reactivo, como se houvesse forma de lidar com o pior. Gosto particularmente de pessoas assim: que nos avisam dos riscos que corremos e nos aconselham a estarmos preparados para o pior.



sexta-feira, 29 de julho de 2016

Os bons resultados

Como escrevi há dois dias, fez-me imensa confusão a redução de encargos com o desemprego verificada no primeiro semestre deste ano. Algumas pessoas comentaram e deram várias sugestões para esta diminuição, por exemplo, menos encargos em estimular o emprego ou haver mais desempregados que atingiram o limite dos 18 meses em que podem receber subsídio de desemprego.

O problema que eu tenho decorre principalmente do erro da previsão. É incompreensível não saber o número de pessoas que está prestes a completar 18 meses de subsídio de desemprego, ou não prever que se vai baixar o esforço monetário dedicado a estimular o desemprego, ou seja, estas duas possibilidades indicariam que o governo agiu de má-fé quando produziu as estimativas que colocou no orçamento. As únicas possibilidades legítimas para se fazer um erro do tipo que foi feito são (i) haver uma boa actuação da economia e estas pessoas conseguirem emprego, e (ii) as pessoas saíram do mercado de trabalho voluntariamente, e.g. emigraram, arranjaram um parceiro rico e deixaram de trabalhar, etc.

O post do Pedro Bação acerca da taxa de desemprego ter caído em Maio e ter-se mantido em Junho, levou-me a ir consultar os relatórios recentemente publicados pelo INE. Em 19 de Julho, o INE publicou um relatório onde concluiu o seguinte:

"According to the monthly estimates of the Labour Force Survey, the seasonally adjusted unemployment rate (15 to 74 years old) was 11.6% in May, remaining unchanged from the final estimate for April. The employed population (15 to 74 years old), seasonally adjusted, decreased by 0.6% comparing with the previous month level and by 0.3% when compared with May 2015."

Fonte: INE, 19/7/2016

No relatório de 30 de Junho de 2016, tinha-se publicado o seguinte:
"The provisional unemployment rate estimate for May 2016 was 11.6%, remaining unchanged from the definitive estimate for April 2016.
The provisional unemployed population estimate for May 2016 was 587.4 thousand people, down 0.9% from the definitive estimate for April 2016 (less 5.2 thousand people). The provisional employed population estimate was 4,479.6 thousand people, down 0.6% from the previous month level (less 26.7 thousand people).
In these estimates, it was considered the population aged 15 to 74 and the values were seasonally adjusted."

Fonte: INE, 30/6/2016


Entretanto, a taxa de desemprego de Maio foi revista, como disse referiu o Pedro Bação, e baixou para 11,2%, que se manteve em Junho, provisoriamente, de acordo com um relatório publicado pelo INE, nove dias depois:

"The provisional unemployment rate estimate for June 2016 was 11.2%, remaining unchanged from the definitive estimate for May 2016.
The definitive unemployment rate estimate for May 2016 was 11.2%, being revised downwards by 0.4 percentage points from the provisional estimate released one month ago.
The provisional unemployed population estimate for June 2016 was 568.8 thousand people, down 0.7% from the definitive estimate for May 2016 (less 4.0 thousand people). The provisional employed population estimate was 4,532.3 thousand people, up 0.2% from the previous month level (more 7.7 thousand people).
In these estimates, it was considered the population aged 15 to 74 and the values were seasonally adjusted."

Fonte: INE, 28/7/2016

Quem compara sumário do relatório de Junho com o de Julho fica de pé atrás. Dizia-se que, em Maio, a população empregada tinha diminuído em mais de 26 mil almas, mas a taxa de desemprego também diminuiu -- estas duas coisas juntas levantam questões, não clarificam. O que concluir destes números? Há várias possibilidades, como ou houve muita gente que atingiu os 74 anos em Maio (estranho), ou reformaram-se, ou emigraram, ou morreram, ou arranjaram um emprego não-declarado nas Finanças, ou o número provisório estava errado. Ontem fiz o download dos números mais recentes e confirmam a última possibilidade. Como o Pedro Romano fez um bom post, hoje, no Desvio Colossal sobre isto mesmo, remeto-vos para lá.

Antes de começarem a soar as trombetas da vitória, ainda é preciso esperarmos pela estimativa do crescimento do PIB do segundo trimestre para saber se esta boa evolução do emprego tem alguma repercussão na taxa de crescimento da economia. As pessoas terem um emprego é uma condição necessária, mas não é suficiente: é necessário também que os empregos criem valor para a economia. É nesta parte que Portugal frequentemente falha. E, se as estimativas da evolução da receita dos impostos no primeiro semestre estão correctas, o risco de se ter falhado aí é considerável.

Faz de conta

O Rui num comentário ao meu post anterior lamenta a forma como a imprensa portuguesa trata os assuntos da União Europeia. Tem toda a razão. Mas discordo do Rui num ponto. A forma como os jornalistas portugueses trataram o tema das sanções não foi um bom exemplo. Quem leu os jornais ou viu os noticiários televisivos ficou, uma vez mais, com a ideia de que existe uma espécie de relação bilateral entre Portugal e a “Europa”. Nós e eles. Nós contra o resto do mundo. Isto é do mais puro provincianismo. Na verdade, os alemães estão-se nas tintas para Portugal. Para eles, era suficiente venderem-nos os carros e dar por aqui umas voltas no verão. O resto dispensavam. Portugal até podia sair amanhã da União Europeia. Era um favor que lhes fazíamos – Merkel e Schäuble rebolaram-se com certeza a rir se por acaso alguém lhes falou da ameaça de um referendo à permanência de Portugal na UE de Catarina Martins. Aliás, se parte substancial da nossa dívida pública não fosse a bancos alemães, a Alemanha, provavelmente, nunca nos teria posto a mão por baixo em 2011. Ficaríamos ao Deus dará, afundados numa dívida externa colossal e na nossa irrelevância.
As preocupações da Alemanha são outras. A Ucrânia, por exemplo. Há quanto tempo os nossos media não dizem uma palavra sobre esse país? Ou sobre a tensão das relações com a Rússia? As sanções nunca foram um tema central na Europa nas últimas semanas. Lamento muito, mas as bravatas patrióticas do nosso primeiro-ministro cá dentro não impressionam ninguém lá fora. 

Roubos e derrubes

Há cerca de duas semanas que andamos entretidos de novo com a questão da legitimidade da Geringonça. Sinceramente, já cansa. Tudo devido a uma entrevista de Pedro Passos Coelho, onde este considerava que a legislatura lhe havia sido roubada. O DN fez manchete com a declaração. O PSD fez banners na Internet. As redes sociais e caixas de comentários, como sempre, inflamaram. Luís Aguiar-Conraria escreveu dois artigos no Observador a explicar como António Costa deveria ser primeiro-ministro porque é o vencedor de Condorcet. Duas semanas de discussão infértil redundaram, contudo, num desmentido do próprio DN. O jornal publicou ontem um post scriptum em editorial dizendo que havia feito uma transcrição incorrecta das palavras de PPC. Assim, onde se lia “roubou” dever-se-ia ler “derrubou”. Os desvãos fonéticos da língua de Camões... De facto, ouvindo o áudio da TSF, podemos ouvir claramente “derrubou”. No entanto, temo que o erro analítico de Passos Coelho (e de muitos outros) continue presente.

Assim, face aos últimos 10 meses de discussão política em Portugal, creio ser necessário esclarecer alguns pontos sobre o funcionamento institucional de uma democracia semi-presidencial para clarificar o modo como se formam governos e o quão inadequado é utilizar o critério de Condorcet neste contexto.

1. As eleições gerais não são sobre a eleição de um executivo ou de um primeiro ministro. São eleições nas quais os eleitores delegam poder para os representantes agirem em seu nome, numa legislatura (parlamento).

2. No nosso sistema, os partidos são particularmente fortes como unidades organizativas, por razões constitucionais, institucionais, históricas, etc. Aliás, quando vamos votar, votamos em símbolos de partidos. Os partidos não só têm o monopólio da selecção dos candidatos, como têm a capacidade (cada vez mais rara na Europa) de manter a lista fechada, i.e., impedir qualquer tipo de personalização e competição intra-partidária. Estamos, pois, sujeitos aos benefícios e malefícios de um ambiente predominantemente partidário, onde as estratégias das lideranças têm um papel forte na determinação dos outputs políticos, incluindo a função representativa que mencionei no ponto anterior.

3. Os processos de formação de governo nas democracias de base parlamentar são feitos no parlamento, com regras próprias estabelecidas pela CRP e pelo Regimento da AR. Isto significa que a mesma composição parlamentar pode dar origem a múltiplas constelações governativas. Se o PS tivesse escolhido fazer um acordo parlamentar com o PSD e CDS, ou apenas com PSD, encabeçado ou não por Passos, esse governo e esse primeiro-ministro teriam exactamente a mesma legitimidade que o actual governo. Isto independentemente de quem nós achamos ser o vencedor de Condorcet à data das eleições. O objectivo do nosso sistema não é obter um primeiro-ministro através do critério de Condorcet. A obtenção de um primeiro-ministro é simplesmente uma consequência da formação do governo.

4. Portugal encontra-se ainda numa situação bastante primária quanto ao entendimento dos processos de formação e queda de governo. Esta é uma das funções do parlamento. É muito comum noutras democracias existirem mudanças de governo sem eleições e, com as mudanças de governo, de PM. É, de facto, mais comum do aquilo que se pensa (basta passar os olhos em bases de dados internacionais como ParlGov). Para além disso, em Portugal, existe ainda um (potencial) escolho adicional ao sistema: o Presidente da República tem também uma papel decisivo na formação e queda de governo. Compete a este órgão agir como informateur (aquele que convida o formateur para formar governo), tendo, pois, capacidade de, numa primeira fase, constrangir decisivamente o menu de escolhas disponível. Pensando simplesmente num restaurante: quando nos sentamos podemos escolher dentro do menu, mas previamente alguém teve a possibilidade de escolher aquilo que nós podíamos escolher.  Da mesma forma, o parlamento só pode aprovar ou derrubar um governo cuja formação tenha sido indicada pelo Presidente.

Esclarecido o contexto institucional em que nos encontramos, estamos agora em condições de analisar as declarações de PPC e de muitos outros, ao longo dos últimos meses.

5. Tudo isto significa que não há “roubos” porque ninguém, antes da votação parlamentar do programa de governo, tem o direito a governar.

6. Nenhum governo “derruba” outros governos, como Passos Coelho sugeriu. É a legislatura que o faz. A questão não é meramente semântica. Não só a legislatura é um órgão independente do executivo, como tem funções diferentes. Uma legislatura é simultaneamente um microcosmos que representa a sociedade e um palco de estratégias dos vários partidos que nela figuram. É a conjugação destas duas coisas que pode, facilmente, levar a uma reorganização de forças no parlamento, consoante as circunstâncias se alteram. Como produto dessa reorganização, teremos uma queda de um governo e formação de outro.

7. Nenhum governo tem “a obrigação de cumprir o mandato até ao fim”, como PPC também afirmou. Nem sequer compete ao governo decidir sobre a sua própria sobrevivência. Compete à legislatura e, num regime semipresidencialista, compete simultaneamente ao presidente, que pode dissolver a assembleia e marcar novas eleições, embora não controlando a relação e a organização de forças na nova assembleia.

A/C do INE

Ando a ler os relatórios do INE que estão em inglês e tenho algumas sugestões. Por exemplo, o número de pessoas é uma coisa contável e, para coisas contáveis, nós não usamos "less than", usamos "fewer than". Quando nos referimos aos valores do mês passado, temos de usar a forma possessiva: "previous month's level", e não "previous month level".

Diz o INE aqui:
"The provisional unemployed population estimate for June 2016 was 568.8 thousand people, down 0.7% from the definitive estimate for May 2016 (less 4.0 thousand people). The provisional employed population estimate was 4,532.3 thousand people, up 0.2% from the previous month level (more 7.7 thousand people)."

Eu sugiro, pelo menos, a seguinte correcção:
"The provisional unemployed population estimate for June 2016 was 568.8 thousand people, down 0.7% from the definitive estimate for May 2016 (less 4.0 thousand fewer people). The provisional employed population estimate was 4,532.3 thousand people, up 0.2% from the previous month's level (more 7.7 thousand more people)"

Este inglês é muito "wordy" e seria de bom tom revê-lo para que fluísse melhor, mas dá a ideia que quem o escreveu inicialmente quis que o formato fosse pré-determinado, de forma a que alguém possa apenas alterar algumas palavras-chave, tipo "increasing", "decreasing", "remaining unchanged", etc. Ou então, nem há uma pessoa que ajusta isto, o que há é uma formulazita ou uma macro que muda o texto quando o mês e os cálculos mudam. Quer dizer, se fosse eu, havia...

quinta-feira, 28 de julho de 2016

E diria mesmo mais...

Alguém no Independent anda a ler o que eu tenho escrito sobre a Alemanha e os refugiados. Hehehehe.

(Quer dizer, não será exactamente assim, mas não podia deixar escapar a oportunidade de anunciar que não estou sozinha nesta caminhada contra um medo que cria espaço para a cegueira e o ódio. Mais ainda tratando-se de pessoas que escrevem em estrangeiro que, como é sabido, é sempre mais interessante que o produto nacional. Mais ainda tratando-se de um homem, o que impede aquele paternalismo que às vezes se abate sobre as mulheres que se atrevem a sair ao espaço público para dizer o que pensam.)

Falando muito a sério, é isto: a atitude de Angela Merkel a favor dos refugiados pode ter salvo a Alemanha de ataques terroristas realmente grandes. Leiam, leiam, é uma análise muito interessante.

E diria mesmo mais: até pode ser que um dia (até pode ser que neste preciso momento) haja um desses ataques terroristas com dezenas de mortos na Alemanha. Não há segurança absoluta perante a loucura, o ódio, as estratégias de poder. Mas se é para morrer, prefiro morrer de pé e fiel aos valores em que acredito, a morrer em fuga como um rato que salta do navio.

Tanto mais que as propostas de fuga que tenho ouvido por aí são disparatadas e suicidas. O ódio não se combate com o ódio. Tentá-lo, é perder três vezes: perdemos, porque em termos de ódio, "eles" estão mais desesperados que nós (por exemplo, dispostos a dar a vida para destruir inimigos); perdemos porque desistimos dos valores com os quais queríamos construir um futuro para os nossos filhos; e perdemos porque confirmamos os motivos do ódio contra nós.


Revelador

O meu último post foi um thought experiment de extremo interesse para mim. O meu único ponto no post era o de que a não imposição de sanções por parte da UE, e os dados da execução orçamental, eram vitórias do atual Governo. Não era uma elocubração sobre os méritos da Política do Governo, nem sequer sobre os resultados últimos dessa Política. O ponto era apenas que dois eventos específicos, circunstanciais, limitados no tempo, constituíam vitórias para o Governo. E não vejo como podem ser vistos de outra forma. 

O que mais li nos últimos dias foi que as sanções, a existirem, serviriam para castigar o Governo atual. Foi a linha oficial do PSD, a começar na sua ex-ministra das Finanças. Ora, se a aplicação de sanções implicaria uma derrota do Governo, como é que é possível que a não imposição não implique uma vitória do Governo? Eu sei que há uma tendência generalizada para ver a política partidária como um jogo de futebol. Já que estamos nessa toada, pergunto: como é que chegámos a um ponto em que se aceita que um dos lados pode perder, mas nunca pode ganhar? O que é que isso diz sobre a honestidade intelectual de quem pensa assim?

Quanto à execução orçamental, parece-me evidente que conseguir cumprir com as metas estabelecidas para o défice, enquanto se revertem todas as políticas mais significativas do anterior Governo, é uma derrota, mesmo que circunstancial, para a linha argumentativa do anterior Governo, que defendia que isso era impossível. Novamente, é difícil, em democracia, perceber como é que um dos lados pode perder sem o outro ganhar. E, novamente também - e é bizarro que o tenha de explicar - esta é uma apreciação sobre uma fotografia isolada no tempo (esta execução orçamental). Não afirmei nada quanto ao mérito ou o sucesso a longo prazo da Política do Governo. É uma vitória, fora de casa. Não ganharam o campeonato. 

Finalmente, alguns dos comentários insinuaram que faço favores ao Governo. A única coisa que quero dizer sobre isto é que acho estes comentários próprios de um embrutecimento intelectual e moral com o qual, por motivos básicos de higiene, não me envolvo e nunca me envolverei. Podem tentar à vontade. Espero, ainda assim, que quem faça esses comentários se possa orgulhar tanto como eu de tudo o que conseguiu na vida, mantendo-se inteiramente independente e livre. 

O desemprego continua em queda

Tal como em Junho, os valores do desemprego hoje divulgados pelo INE são melhores do que o esperado. O número de desempregados em Maio foi revisto para baixo, o que significa que a tendência de queda do desemprego desde o pico de Setembro de 2015 continua a ser clara, de acordo com as duas estimativas da tendência no gráfico seguinte.

À beira da ruptura

Em Espanha, quase não se discutiram as sanções nos media. Talvez porque toda a gente percebeu que aquilo não ia dar em nada. Mas, em Portugal, foi criado um enorme folhetim, alimentado diariamente. Serviu sobretudo para ressuscitar as nossas padeiras de Aljubarrota que, de peito feito, andam por aí a acusar de antipatriotismo quem duvida da estratégia do nosso Nuno Alvares Pereira, perdão, do nosso primeiro-ministro. Enfim, acabou o suspense. Ganhámos esta batalha. Demos cabo dos boches. Brindamos.
O problema é que o patriotismo desta gente não descansa. Nem em férias. Não devem tardar as cenas dos próximos episódios. A próxima temporada da série “À beira da ruptura” já deve estar a ser preparada. É preciso manter o povo entretido – “alienado”, como diziam antigamente os nossos camaradas -, que as coisas não estão para brincadeiras. Quem vão ser agora os vilões? O terrível Wolfgang Schäuble continuará a assombrar a nossa pátria? Qual será o destino dos antipatriotas e traidores, vendidos aos interesses sórdidos do grande capital e de Bruxelas? Brevemente saberemos. Os assessores de António Costa já devem estar a escrever o novo guião.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Há coisas simples

A não imposição de sanções a Portugal é uma vitória inequívoca do atual Governo. Os dados da execução orçamental também. 

Além de uma vitória do atual Governo, são uma rejeição ampla de premissas essenciais do anterior Governo, nomeadamente:
  1. A premissa de que as redução nos salários da função pública e o corte nas pensões são essenciais para atingir as metas orçamentais estabelecidas. 
  2. A premissa de que o cumprimento dos compromissos europeus implica não fazer frente ao sindicato de credores e a Bruxelas. Antes, parece que o cumprimento dos compromissos europeus pode mesmo depender de se fazer frente a Bruxelas.


terça-feira, 26 de julho de 2016

História gótica



98. Seguiram o cortejo dos malditos. Ada segurava a mão da criança, que avançava à frente do pequeno grupo, puxando-os, quase os arrastando.

A execução orçamental

Saiu a apreciação da execução orçamental do primeiro semestre do ano. Dizem as notícias que há números para "todos os gostos", mas acho que os jornalistas gostam de exagerar. O desempenho das receitas surpreende pela positiva, mas o que surpreende mais é a evolução dos tipos de impostos.

As receitas dos impostos de vício -- tabaco e álcool -- aumentaram 52,9% e 9,2%, quando o orçamentado era apenas de 28% e 2,2%. A receita do imposto de selo aumentou 50,2%, em vez de 2,8%. Não percebo qual a dificuldade em estimar o impacto do aumento destes impostos, especialmente do tabaco e do álcool. Ou o governo se enganou no cálculo da estimativa de propósito ou, num trimestre, os portugueses mudaram radicalmente o seu comportamento para pior, fumando e bebendo mais (estes impostos foram introduzidos em Abril). Esperemos que tal não indique um aumento do stress, depressão, ansiedade, etc., pois isso irá reflectir-se num aumento das despesas de saúde eventualmente e em pior produtividade no trabalho.

O aumento das receitas do imposto de selo também não faz grande sentido. Este imposto incide sobre coisas como uso de crédito, jogos de sorte (outro vício), operações por instituições financeiras, contratos de arrendamento, aquisição de imóveis, etc. Na maior parte dos casos, há algo na economia real que dá origem ao imposto. Por exemplo, se os portugueses usam mais o crédito o que é que compram com o mesmo, pois essas compras aumentariam as receitas de outros impostos, como IVA ou IRC. Se há mais transferências bancárias que não aparecem nas métricas da economia real, então uma explicação é que há mais fuga aos impostos ou os portugueses contraem novas dívidas para pagar dívidas antigas. Outra explicação possível para o aumento das receitas do imposto de selo sem que se veja nada de significativo na economia real, é os portugueses jogarem mais em jogos de sorte.

Para medir o progresso da economia, podemos olhar para os impostos que estão correlacionados com consumo, produção e venda de bens e serviços, e salários. Tanto o IRS, como o IRC, e como o IVA tiveram evoluções negativas, ou seja, compra-se menos do que o governo esperava, os salários não evoluíram tão bem, e as empresas têm menos lucros do que o esperado. Há várias explicações: ou os portugueses conseguem fugir melhor ao fisco, ou o nível de actividade económica, emprego, e consumo está pior, ou uma outra explicação possível é haver um desfazamento temporal ou um efeito sazonal, em que as pessoas compram mais bens e serviços na segunda metade do ano, em vez da primeira.

A contenção da despesa parece ser uma vitória conseguida por este governo, mas acho muito cedo para deitar foguetes. Por um lado, na segunda metade do ano [correcção: em 2017], haverá eleições autárquicas e, como é tradição em Portugal, o governo irá gastar dinheiro a comprar votos, logo não vale a pena estar a gastar dinheiro tão antes das eleições porque as pessoas precisam é de ser subornadas perto da véspera do voto. E o governo tem um grande incentivo para comprar votos: há a possibilidade de os resultados das próximas eleições permitirem ao governo antecipar eleições legislativas, pois o PS não tem nada a perder: se o PSD tiver mais votos, o PS pseudo-coliga-se com a Extrema Esquerda e tudo fica na mesma; se o PS tiver mais votos do que o PSD, não precisa de pseudo-coligação.

Por outro lado, o primeiro trimestre deste ano ainda era do OE do governo anterior, logo este governo tem também um incentivo para estagnar a economia pois pode colocar as culpas no plano económico do governo anterior. Quanto mais fraco o início da governação, maior o crescimento que pode acontecer na segunda parte do ano, dando credibilidade a esta governação, e também em 2017. Não se esqueçam que para fazer uma coisa crescer, é tão válido aumentar o numerador, como controlar o denominador.

Basta analisar a evolução da despesa para ver que o governo não quer que o PIB aumente: manteve os salários (precisa dos votos), mas reduziu a aquisição de bens e serviços (-2,1%), as transferências correntes (-5,4%), o investimento público (reduzido 20% quando planeava um aumento anual de 12%), e as despesas com o desemprego (-15%). Já as despesas com as pensões aumentaram 2,8%, em vez dos 3,2% (não ter algum aumento também iria afectar os votos).

Os meu conterrâneos mais optimistas dirão que a despesa foi contida porque a receita não evoluiu como se esperava, só que este argumento tem uma grande falha: contemporaneidade. A despesa e a receita do orçamento são duas variáveis contemporâneas, i.e., evoluem ao mesmo tempo. Não havia maneira de saber qual a evolução da receita quando se decidiu cortar na despesa. Como a decisão de conter a despesa foi feita antes de se saber a evolução da receita, concluímos que, ou o governo sabia que a sua governação não ia gerar receita, ou reduziu a despesa do primeiro semestre independentemente da evolução da receita.

Crescimento anual do PIB, Portugal e Espanha, 1974-1990, aos preços de 1990 (percentagem)

A pedido de alguns dos nossos estimados leitores e comentadores, aqui estão os dados do crescimento anual do PIB português e espanhol entre 1974 e 1990.

Nota: retirei estes dados, uma vez mais, de um texto da Marina Costa Lobo intitulado: "Portugal na Europa, 1960-1996 - uma leitura política da convergência económica", que faz parte da obra "A situação social em Portugal 1960-1999" (Vol. II), organizada por António Barreto e publicada em 2000.



Portugal
Espanha
1974
1,1
5,6
1975
-4,3
0,5
1976
6,9
3,3
1977
5,5
2,8
1978
2,8
1,5
1979
5,6
0,0
1980
4,6
1,3
1981
1,6
-0,2
1982
2,1
1,6
1983
-0,2
2,2
1984
-1,9
1,5
1985
2,8
2,6
1986
4,1
3,2
1987
5,5
5,6
1988
5,8
5,2
1989
5,7
4,7
1990
4,3
3,7

PIB: crescimento anual, 1961-1999 (percentagem)

Em 2000, a economia portuguesa cresceu 3,8%. Foi uma espécie de canto do cisne do nosso actual modelo económico. Em 2001, começava a "longa estagnação", como lhe chamaram os meus prezados colegas de blogue, Fernando, Luís e Pedro, no seu "Crise e castigo", um livro fundamental para quem quiser perceber melhor a história da economia portuguesa das últimas décadas. em especial a partir da adesão à CEE em 1986. Em 2014, o PIB português era igual ao de 2001. Em 2015, o PIB cresceu 1,5%. Para 2016, a última previsão que vi do crescimento era de 0,9%, da Universidade Católica.
                 
 

Portugal
Espanha
EUR 15
1961-1970
6,4
7,3
4,9
1971-1980
4,7
3,5
3,0
1981-1990
3,2
3,0
2,4
1991
2,3
2,3
1,7
1992
2,5
0,7
1,2
1993
-1,1
-1,2
-0,4
1994
2,2
2,3
2,8
1995
2,9
2,7
2,4
1996
3,0
2,3
1,6
1997
4,1
3,8
2,5
1998
3,5
4,0
2,7
1999
3,1
3,6
2,1
Fonte: Eurostat       



Profetizar

Eu sou uma profeta da desgraça: acho que Portugal não está a ser governado à altura dos seus desafios. No entanto, há uma possibilidade que as coisas não sejam tão ruins a médio-prazo, como eu prevejo, por causa dos efeitos do Brexit. A UE saiu-se tão mal da votação do Brexit, que a Alemanha já falou em perdão de dívida para alguns países do sul da Europa. O partido que estiver no poder e beneficiar de menores encargos com a dívida, pode gastar mais dinheiro a comprar votos, tal como foi feito no passado, mas sacrificam o longo prazo em favor do bem-estar político de curto prazo.

Custa-me ver Portugal ser mal-governado, mas em democracia corremos estes riscos; para além disso, se olharmos para os políticos profissionais portugueses notamos logo que a incompetência é, ela própria, extremamente democrática no que diz respeito a partidos. Os políticos não chegam ao topo por competência, nem mérito. É mais um caso de água mole em pedra dura, pois começam na vida partidária tão cedo, que nem aprendem a fazer mais nada na vida. Pior do que termos políticos incompetentes é ter um povo que olha para o lado e não é exigente com a sua classe política.

Depois da chamada da Troika, meio mundo ficou chocado porque achou que não tinha sido avisado dos problemas iminentes, quando, na realidade, tinha insultado quem o tinha tentado avisar. Agora estamos pelo mesmo caminho. Não só há quem já esteja chateado dos profetas da desgraça, que só vêem mal no que o governo faz, como há umas outras pessoas que acham que o governo só pode ser criticado depois de fazer mal. Quando vai para o poder é puro e virgem, completamente livre de mácula, e merece toda a nossa confiança. Este argumento é dos mais estupentados que já ouvi, pois o corolário desta teoria é dizer que poderíamos ter evitado chamar a Troika na véspera de a termos chamado. A véspera foi o dia em que tínhamos as mãos completamente amarradas e a única alternativa era chamar a Troika.

Ninguém decide tirar um curso universitário na véspera de se candidatar ao emprego no qual o curso é necessário; é preciso planear, controlar o esforço de estudo para se ter notas para entrar na faculdade e depois passar as cadeiras para terminar o curso -- ou seja, é preciso agir com antecedência. É a mesma coisa quando se fala do futuro de um país, de como o governar, e de como exercemos as nossas responsabilidades de cidadania. Temos de ser guiados por uma perspectiva de longo prazo e de nos prepararmos e agirmos com antecedência. Talvez esta forma de pensar seja defeito meu, pois eu comecei a planear a minha reforma quando tinha 15 anos e, quase trinta anos depois, continuo a planeá-la e, lá está, emigrei, ou expatriei-me, como dizem os americanos.

As pessoas que assim o entenderem têm o direito de acreditar nos políticos e de ser ingénuas. Afinal, a ordem das coisas diz-nos que metade da população tem um nível de inteligência abaixo da média, ou seja, em média, em cada duas pessoas que nos aparecem à frente, é natural que a inteligência de uma esteja abaixo e outra acima da média. O ideal era a população ter um nível médio de inteligência alto e com tendência para crescer. Com uma população a envelhecer, a velocidade de expansão do nível médio de inteligência abranda, logo o país está numa situação de desvantagem relativamente a outros países com populações mais jovens e com maior capacidade de atrair imigrantes qualificados, que rejuvenescem a população.

Talvez haja uma revolução tecnológica em Portugal que nos livre da desgraça. Entretanto, dedico-me a profetizá-la quando vejo que há razão para tal, pois é assim que melhor sirvo os interesses de Portugal e dos portugueses.



segunda-feira, 25 de julho de 2016

Detalhes

A NOS perdeu em tribunal contra uma cliente que a NOS dizia tinha quebrado o contrato. Vai-se a ver e o serviço nunca foi prestado nas condições contratadas. Saúdo os tribunais e a cliente por ter lutado contra uma empresa que tem más práticas e subverte a lei em seu favor. E reparem que, se um caso minúsculo destes é notícia, é sinal de que há qualquer coisa errada com Portugal. Empresas com más práticas perderem em tribunal deveria ser uma coisa trivial.

Calma, é apenas um pouco tarde



Ontem, na viagem de regresso a Berlim, ao entrar na Baviera sintonizámos o rádio numa estação local, mesmo a tempo de ouvir o locutor dizer: "Continuamos todos em estado de choque devido aos acontecimentos dos últimos dias. O Estado está muito atento e a fazer todos os possíveis para evitar que tragédias como estas se repitam. E cada um de nós terá de fazer também tudo o que está ao seu alcance para as impedir. Temos de ser muito mais atentos uns aos outros, e aprender a ter gestos de simpatia e humanismo para com todos." Depois continuou normalmente o programa musical da tarde.

Um pouco mais tarde noticiaram que numa cidade do sul da Alemanha um homem matou uma mulher com um machete no meio da rua, e feriu mais uns quantos. Pela descrição que li hoje no Spiegel, era um refugiado sírio a quem não deram autorização para ficar na Alemanha, mas foi ficando porque não se pode repatriar pessoas para países em guerra. A vítima era sua colega de trabalho. Depois de matar essa sua conhecida, partiu o pára-brisas de um carro que passava, e entrou em dois estabelecimentos de restauração - num, esfaqueou um homem na cara; no outro, espetou várias vezes a sua faca numa mesa de madeira. Durante a sua fuga, duas mulheres feriram-se. Um condutor que testemunhou o ocorrido atropelou-o propositadamente para o imobilizar. O atacante está agora nos cuidados intensivos do hospital, sob vigilância policial.

Esta manhã, leio a notícia de um atentado suicida à entrada de um festival.

Crescimento anual do PIB, 1961-1973, aos preços de 1990 (percentagem)

A propósito de alguns comentários no meu último post, fui verificar os dados. Assim, entre 1960 e 1973, o PIB português cresceu a uma taxa média anual de 6,9%. Na Europa comunitária (a 12), cresceu em média 4,5%. Nesse período, como é evidente, há evoluções diferentes entre os países europeus. Para ilustrar essas diferenças, coloquei também na tabela dados sobre a França e o Reino Unido.
Estes dados foram retirados de um texto da Marina Costa Lobo intitulado: "Portugal na Europa, 1960-1996 - uma leitura política da convergência económica", que faz parte da obra "A situação social em Portugal 1960-1999" (Vol. II), organizada por António Barreto e publicada em 2000.


Portugal
Espanha
França
Reino Unido
1961
5,2
11,8
5,5
3,3
1962
6,6
9,3
6,7
1,0
1963
5,9
8,8
5,3
3,8
1964
7,3
6,2
6,5
5,4
1965
7,6
6,3
4,8
2,5
1966
3,9
7,2
5,2
1,9
1967
8,1
4,3
4,7
2,3
1968
9,2
6,6
4,3
4,1
1969
3,4
8,9
7,0
2,1
1970
7,6
4,2
5,7
2,3
1971
6,6
4,6
4,8
2,0
1972
8,0
8,1
4,4
3,5
1973
11,2
7,8
5,4
6,7