Em
2016, antes ainda da vitória de Donald Trump, Jason Brennan publicou o seu
provocatório “Against Democracy”. Brennan parte de uma premissa: em geral, os
votantes são uns ignorantes – os americanos, mas não há nenhum motivo para
acreditarmos que os do resto do Ocidente são melhores. O cientista político
vê a sociedade americana dividida em três grandes grupos. Os hobbits são as
pessoas desinformadas, não sabem nem querem saber dos assuntos públicos e deviam
abster-se de qualquer responsabilidade política – nos EUA correspondem, grosso
modo, aos abstencionistas, mais de 40% do eleitorado. Os hooligans acompanham
as notícias da política como quem acompanha as notícias do seu clube de
futebol, ou seja, de forma completamente enviesada. Por fim, os vulcanos
estudam os assuntos políticos com objectividade, ouvem os outros e ajustam se
necessário as suas opiniões. Estamos perante tipos-ideais, para usarmos a
terminologia de Max Weber. De qualquer maneira, a larga maioria dos americanos
é hobbit, hooligan ou fica algures entre os dois.
Brennan
evoca uma esperança de John Stuart Mill segundo a qual o envolvimento dos
cidadãos na política seria uma forma de os iluminar – um maior envolvimento
político dos cidadãos desenvolveria as suas competências em termos de
pensamento crítico e aumentaria o seu conhecimento, fazendo deles melhores
cidadãos. Usando a classificação de Brennan, o filósofo e economista inglês
acreditava que os hobbits se poderiam transformar em vulcanos. Uma esperança piedosa. 150 anos e
muitas décadas de massificação do ensino depois, o próprio Mill, se voltasse a
este mundo, teria perdido as suas esperanças. O mais surpreendente nesta
história é a estabilidade e a persistência da ignorância. E de nada serve o
acesso à informação política se ter tornado muito mais fácil e barato, acrescenta
Brennan.
Posto
isto, Brennan acha que não vale a pena continuarmos a alimentar ilusões sobre
os eleitores. Pior, à semelhança de Joseph Schumpeter, acredita que a política faz
mal às pessoas, corrompe-as ou estupidifica-as. O cidadão mais ativo politicamente tem usualmente opiniões fortes,
raramente fala com os que têm opiniões diferentes e revela altos níveis de
enviesamento quando discute ou participa na política. A participação política
tende a dividir a sociedade em grupos adversários, em tribos que se digladiam. Ao
contrário do que clamam, ou aspiram, autores como Jürgen Habermas, a discussão
e a deliberação políticas não se pautam pela força do melhor argumento. O que
realmente importa é a retórica, o sex
appeal, e “promoting the team”. Numa palavra, a participação política tende
a transformar os hobbits em hooligans e os hooligans em hooligans ainda piores.
Brennan
não vê os hobbits como um sinal preocupante da saúde da democracia, mas sim
como um começo prometedor. Se o envolvimento político tende a corromper em vez de
edificar, então o afastamento é preferível ao envolvimento político. Seja como
for, as pessoas não se vão tornar mais interessadas ou informadas. Isto porque
existe uma racionalidade nessa ignorância política, conforme explicam os
economistas com a chamada ignorância racional. A democracia não compensa os
cidadãos do esforço e tempo necessários para se manterem informados: os
indivíduos sabem intuitivamente que o seu voto individual não faz qualquer
diferença – não tem influência nos resultados finais de uma eleição, nem nas
políticas do governo. Por isso, os que votam fazem-no por verdadeira convicção,
o que vai completamente contra a teoria muito invocada do voto individual
egoísta, ou seja, do voto em função da carteira estar mais ou menos cheia de
dinheiro.
Perante
esta irremediável ignorância e irresponsabilidade dos eleitores, a maioria
acaba, muitas vezes, por impor ao resto da população políticas perversas e
perigosas. Os resultados só não são piores porque as democracias amiúde, devido
nomeadamente ao sistema de poderes e contrapoderes, se afastam da vontade da
maioria, levando a que os governantes não cumpram as suas promessas. De
qualquer maneira, um eleitorado maioritariamente ignorante e irresponsável
levará a uma deterioração contínua do sistema, com a qualidade dos
candidatos a baixar. E Brennan considera injusto depositarmos o nosso futuro
nas mãos de cidadãos irresponsáveis. É como se fossemos obrigados a ser
operados por um cirurgião incompetente.
Para
Brennan, o valor da democracia é puramente instrumental. A democracia “is
nothing more than a hammer”. Se pudermos encontrar um martelo melhor, devemos
usá-lo. O cientista político americano defende uma “epistocracia”, um modelo
insinuado por Platão e Mill, no qual o poder político é formalmente distribuído
de acordo com as qualificações e a competência. As pessoas deixariam, assim, de ter
garantida a igualdade de direitos em termos de voto e de candidaturas a cargos
políticos.
Brennan nega que a sua fórmula
seja totalitária ou sequer parecida com uma tecnocracia autoritária, porquanto
não se trata de entregar o poder a especialistas ou aos melhores, mas sim de afastar
os piores. No fundo, toda a argumentação do filósofo norte-americano assenta em
probabilidades: uma maioria democrática tem mais ou menos probabilidades de
escolher políticas erradas do que um público informado, racional, competente e
responsável? O autor não tem dúvidas na resposta - apesar de admitir que também
se podem gerar abusos de poder numa epistocracia,
A
epistocracia preconizada por Brennan levanta, todavia, várias questões.
Primeira, alguns estudos sublinham as insuficiências e falhas dos mais
conhecedores e informados, ou seja, os especialistas. Segunda, quem e como se
decide quem faz parte do público bem-informado e competente? Terceira, com que
critérios se decide se uma política é boa ou má? Quarta, é legítimo reduzir a
democracia a um problema de informação e competência, ignorando a dimensão
identitária do voto? Quinta, e recorrendo a uma metáfora de John Dewey, quando
temos um problema com os sapatos, é o especialista que o pode resolver, mas
apenas o povo é que sabe onde é que lhe doem os pés.
Talvez o mais inquietante e significativo seja mesmo o título
do livro: “Against Democracy”. Um aviso de que nada é eterno.
Mais outra questão que se pode levantar - como é que esse governo não-democrático iria pôr em prática políticas que levantam a oposição da maioria da população (e supõe-se que iria por em prática políticas dessas, já que se não não seria necessário acabar com a democracia)?
ResponderEliminarE a primeira medida provavelmente impopular seria... a própria implantação da epistocracia (a maior parte dos cidadãos politicamente empenhados seria contra).
Pegando a adaptando algo que já escrevi há uns anos:
Em última instância, um governo só funciona porque os seus súbditos aceitam obedecer-lhe, e essa obediência deriva, ou do medo, ou do respeito/deferência, ou da convicção que o "o governo somos nós".
Ora, num regime não-democrático com liberdades civis, tanto o medo ou a deferência não funcionam: num regime com liberdade de imprensa, debate político, oposição institucionalizada, alternância no poder entre facções rivais, etc. dificilmente "o povo" sentirá medo dos governantes; e também dificilmente os achará "seres superiores e/ou ungidos por Deus"; assim, dificilmente a maioria aceitará ser dirigida por uma minoria.
Desta forma, um regime não-democrático que mantenha as liberdades civis estará sujeito a uma pressão constante para alargar o poder até chegar à democracia - olhe-se para a Europa da século XIX, para Atenas ou para Roma antiga: a partir do momento em que a monarquia autoritária foi derrubada (para ser substituida pela monarquia constitucional ou pela republica oligárquica), a história dessas sociedades foi a da luta constante da "plebe" para a maior participação no governo.
Ou seja, se um Estado não quiser ser uma democracia, só tem duas alternativas - ou uma ditadura brutal, que impõe o seu poder pelo terror e pelo medo; ou um regime autoritário tradicional (como as monarquias pré-modernas), que se impõe pelo simples hábito da obediência aos superiores.
Sim, a "epistocracia" não será fácil de implantar, é uma espécie de desejo que vem desde Platão, em que os réis eram filósofos e os filósofos réis. Brennan sugere vários modelos possíveis: (1) sufrágio restrito - só podem votar e candidatar-se a cargos de poder pessoas consideradas competentes e/ou suficientemente informadas; (2) voto plural – os mais incompetentes e informados (através de um processo legal) teriam direito a mais do que um voto; (3) lotaria; (4) veto epistocrático - todas as leis passariam pelos mecanismos democráticos, mas seria deixado a um corpo epistocrático o direito de veto. Brennan prefere o último modelo. Esse "corpo epistocrático", que Brennan equipara a um Supremo Tribunal, teria, todavia, de ser eleito por muitos milhares de pessoas - é a única forma de as pessoas não votarem de forma egoísta, a pensar nos seus interesses pessoais, uma vez que cada voto individual não faria diferença no resultado final, o que evitaria a negociação de cada voto a troco de favores ou vantagens individuais.Isto também me parece utópico. Mas não deixa de ser significativo que estas propostas andem por aí.
EliminarHá uns tempos, li qualquer coisa (em que se falava do Brennan) em que se dizia que o Brexit e a eleição de Trump fizerem que entre os "liberais" começaram a tornar-se populares ideias parecidas com as de Hans-Hermann Hoppe e Mencius Moldbug (para quem não sabe, "Mencius Moldbug" é o programador e blogger Curtis Yarvin, defensor da monarquia absoluta e/ou de um estado-empresa governo pelos acionistas e de algo parecido com a escravatura)
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