domingo, 15 de setembro de 2013

Lavar a história

Fui ontem ver o Mordomo ao cinema. Fui pela música do Rodrigo Leão, mas também porque a luta pelos direitos civis dos negros me interessa (até pelo seu paralelo com as actuais lutas pelos direitos civis dos homossexuais). Talvez porque hoje em dia Hollywood seja Democrata, parece que simplesmente se recusam a aceitar a História. Sobre as lutas relativas aos direito civis, assisti a um tremendo branqueamento das culpas Democratas.*

A verdade é que nos anos 50 e 60, os campeões das lutas pelos direitos civis eram Republicanos e não Democratas. Ao longo de todo o filme, assiste-se a uma grosseira manipulação. A história do mordomo na Casa Branca começa com Eisenhower a ordenar que tropas federais protejam um negro que pretende frequentar uma universidade segregacionista. O presidente enviou tropas para Little Rock, Arkansas, porque o governador deste Estado deu ordens à polícia estadual para não deixar entrar o negro em causa. Como se sabe, Eisenhower era Republicano. O que não se disse no filme foi que o governador do Arkansas era Democrata. Mais grave ainda, esta atitude de um governador Democrata era comum. Em Alabama, em 1963, passou-se outro caso semelhante também com um governador Democrata.

Em 1957, quando Eisenhower tentou aprovar o que ficou conhecido como o 1957 Civil Rights Act foi obrigado a moderar bastante os objectivos do texto inicial por causa da forte oposição liderada por Lyndon B. Johnson, que, na década seguinte, seria presidente Democrata. Mesmo uma versão bastante mitigada do texto original contaria com o voto contra de dúzia e meia de senadores, todos eles democratas… Vale a pena ler esta carta de Republicano Val J. Washington dirigida a LBJ.

No filme, Lyndon B. Johnson é glorificado como um campeão da luta negra. O seu Civil Rights Act é apresentado como um dos maiores avanços das lutas pelos direitos civis. O que o filme se esquece de dizer é que o texto aprovado era, na sua essência, igual àquele que Eisenhower tinha proposto e a que Lyndon B. Johnson se tinha firmemente oposto em 1957.

Richard Nixon é tratado com bastante desprezo no filme, dando a entender que não passa de um mero racista que quer o voto dos negros. Referir que, ainda no senado, ele se tinha batido pelos direitos dos negros… nem pensar, estragaria o enredo.

Havia algo que eu esperava também ver retratado, que foi o papel das armas nos movimentos de libertação dos negros. Na verdade, quando os negros tinham de enfrentar o Ku Klux Klan (quase exclusivamente composto por Democratas) estavam duplamente desprotegidos. Estavam desprotegidos pela polícia e estavam desprotegidos porque o direito constitucional a ter arma lhes era negado. O próprio Martin Luther King, depois de um ataque a sua casa em meados dos anos 50, viu ser-lhe negado uma licença de porte de arma. Foi no fim dessa década, graças à pressão da National Riffle Association, que os negros passaram a ter o direito a usar armas. E foi nessa altura também que os homens dos capuchos brancos do KKK aprenderam que enfrentar negros armados era bem mais complicado. Até porque aqueles capuchos brancos eram alvos fáceis à noite. O declínio do KKK começou aí.

Enfim, o filme até conseguiu que Ronald Reagan passasse por racista. Na verdade, de acordo com o filme, Ronald Reagan é o primeiro presidente a ordenar que os empregados negros da Casa Branca recebam um ordenado igual ao dos brancos (que até aí era pouco mais de metade). É também o primeiro presidente a convidar a personagem principal para um banquete na Casa Branca. Mas, claro, o filme não poderia dar tais créditos a um Republicano. Logo a seguir, com a demissão do mordomo, é-nos dito que nada era sincero. Era tudo oportunismo. Mas, mais uma vez, a verdade é diferente. A própria personagem real (aquela em que se baseia a personagem do filme) já o disse em diversas entrevistas.

Não me entendam mal. Sigo a política americana desde 1992. E, se votasse, teria votado sempre Democrata. Também considero execrável o lobby da NRA contra um efectivo controlo de armas. Mas história é história e os Democratas não são campeões desta história. A história do Partido Democrata na luta pelos direitos dos negros é recente, começou com o Civil Rights Act de Johnson, em 1964, e culminou com a eleição de Obama. Mas não esqueçamos que o Partido Republicano nasceu em meados do século XIX para combater a escravatura então defendida pelo Partido Democrata.

* Sempre que usar a maiúscula para Democratas e Republicanos refiro-me a membros ou apoiantes do Partido Democrata e do Partido Republicano.

10 comentários:

  1. Dantes havia, na prática, dois partidos democratas, os democratas dos Estados do Norte, normalmente relativamente progressistas e os democratas dos Estados do Sul, do mais reaccionário que se poderia encontrar.
    A razão era simples, Lincoln era republicano e, portanto, depois da guerra da secessão, nenhum republicano conseguia ter qualquer apoio nos Estados do Sul. Então os racistas aderiram ao partido democrata.

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  2. E depois do civil rights act passaram para o Partido Republicano. Exemplo típico: http://en.wikipedia.org/wiki/Jesse_Helms

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    1. É mentira que tenham todos passado para o lado Republicano. A maioria deixou-se ficar onde estava, simplesmente adoptou um novo discurso. Jesse Helms é das pessoas mais execráveis da política norte-americana. Salvo erro, só nos anos 70 ingressou no Partido Republicano, sendo Democrata até lá, o que confirma o que escrevi no post.

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    2. O partido Democrata é na sua génese um partido pró-escravatura e portanto racista. Depois, com a entrada dos progressistas criou-se então os dois partidos democratas que o Álvaro falou. Eu não discordo do seu post. E pelo que conta ainda bem que não vi o filme. Justamente porque os partidos e instituições evoluem, e não têm monopólios de tipos bons nem de tipos maus como parece ser a mensagem. O NRA é um bom exemplo, foi criado por oficiais da União justamente para que os Negros pudessem ter meios de se proteger das “milícias brancas” (i.e. KKK), mas em ‘92 o race-baiting depois do LA riots foi tanto que o Bush-pai acho que devia deixar de ser membro. Agora, acho que os racistas vão para onde se sentem bem, ou pelo menos onde o seu discurso é mais aceite. E a partir de Barry Goldwater muitos têm ido para o partido Republicano, não há como negar. Não quer dizer que não haverá racistas Democratas, longe disso, mas há discursos que já não são tolerados. Enquanto que ainda na semana passada, a estrela Republicana Ted Cruz disse que o senado precisava de 100 Jesse Helms…

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    3. Penso que também não é bem assim - na sua génese o Partido Democrata era acima de tudo o partido do comércio livre, do sufrágio universal, da autonomia local e da agricultura (basicamente os Democratas são os herdeiros do Anti-Federalistas que se opunham à Constituição e só a aceitaram em troca da Bill of Rights), enquanto os partidos que se oponham aos Democratas (Federalistas, Whigs e Republicanos) eram os defensores do protecionismo, do papel das elites, de um governo central forte e da industrialização. Há partida não há nada de intrinsecamente racista na ideologia original do Partido Democrata (que, em teoria, não andaria longe de uma versão pragmática de Rosseau) - aliás, se o racismo anti-negro vinha tradicionalmente dos Democratas, o "racismo" anti-imigrante vinha tradicionalmente do outro partido.

      Os Democratas acabaram por se tornar o partido da escravatura, penso que não por qualquer predisposição idelógica intrinsica, mas simplesmente porque o seu programa pró-agrário, livre-cambista e descentralizador correspondia aos interesses dos proprietários de escravos (bem, inicialmente estes eram dos maiores defensores do Estado federal, mas passaram a ser localistas quando ficaram em minoria); e essa associação com a escravatura acho que até era mais por omissão - isto é, como os Democratas não eram explicitamente anti-escravatura, os vários ramos estaduais do Partido tendiam simplesmente a reflectir o sentimento dominante na respectiva região (anti-esclavagistas no Norte, pró-esclavagistas no Sul, enquanto os Republicanos eram esclavagistas em toda a parte)

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    4. quero dizer, os Republicanos eram anti-esclavagistas em toda a parte

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  4. As contradicções de dois partidos frentistas.
    Tudo o resto é história,não podendo ser escamoteada pelas realidades sociológicas,geográfica e de pensamento no norte e no sul dos estados unidos.
    A verdade acima de tudo.

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  5. Um artigo que pode ter algum interesse para a discussão:

    http://www.theatlantic.com/magazine/archive/2011/09/the-secret-history-of-guns/308608/

    The Ku Klux Klan, Ronald Reagan, and, for most of its history, the NRA all worked to control guns. The Founding Fathers? They required gun ownership—and regulated it. And no group has more fiercely advocated the right to bear loaded weapons in public than the Black Panthers—the true pioneers of the modern pro-gun movement.

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  6. Saúdo-o por este seu texto, por denunciar a manipulação, a adulteração histórica presentes no filme em causa (e há outros...), por (contribuir para) esclarecer quem nos EUA de facto lutou pelos direitos civis...

    ... Mas, como «no melhor pano cai a nódoa», não posso deixar também de aludir a passagens infelizes como: «paralelo com as actuais lutas pelos direitos civis dos homossexuais» - não se trata de «direitos civis», pois eles já os têm, mas sim de (injustificados) privilégios; e «execrável o lobby da NRA contra um efectivo controlo de armas» - não só não é execrável como é meritório, pois trata-se, cumprindo, respeitando, a Segunda Emenda da Constituição, assegurar que aos cidadãos cumpridores da lei continua a ser assegurada a capacidade e o direito de se defenderem... pois nem todos têm meios para pagarem seguranças privados e viverem em residências fortificadas, e os criminosos, os ladrões, os assassinos, não têm nem respeitam qualquer «controlo».

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