Na Sexta-feira de manhã, ao empacotar as minhas coisas para a viagem a Nova Iorque, pensei se queria trazer o último livro do Michael Lewis, "The Fifth Risk". Argumentava eu na minha cabeça que era um bocado grande e eu queria ir leve; depois contra-argumentava que ao menos as letras tinham um tamanho suficiente que seria fácil de ler sem ter de usar óculos. Mas será que queres passar o tempo a ler sobre isto, perguntava-me? Ler sobre actualidades é muito mais fácil do que ler ficção, respondia-me. Então lá veio no saco de mão.
Calhou que o voo fosse adiado porque, por causa do mau tempo na zona de Newark, a FAA limitou o número de voos que podia aterrar por hora. Tentaram que embarcássemos rapidamente, para partirmos antes que a restrição começasse a ter efeito, mas apenas conseguiram que ficássemos presos dentro do avião por mais do que uma hora. E durante esse tempo de espera li mais de metade do livro.
A tese de "O Quinto Risco" é que os EUA são um país rico porque as instituições do governo federal são o óleo que lubrifica a máquina que é a economia americana, viabilizando o sector privado. O risco que existe hoje é que a Administração Trump não colocou pessoas competentes na liderança dessas instituições: há casos em que não colocaram ninguém, outros em que colocaram pessoas incompetentes, e em algumas circunstâncias as pessoas nomeadas têm o objectivo de destruir a missão da instituição porque acham que não cria valor.
Por exemplo, uma das missões do Departamento de Energia é gerir os riscos dos detritos da produção de energia nuclear, outra é dar empréstimos ao sector privado para o desenvolvimento de energias alternativas. Antes que o sector pricado veja valor numa oportunidade, o sector público americano prova que a coisa é possível; mas só com sucessivas vagas de investimento se conseguirá atingir economias de escala e desenvolvimento da tecnologia para haver eficiencia de custo.
Para haver esse investimento, o governo americano empresta ao sector privado e assume o risco desses empréstimos. Os empréstimos são canalizados através de bancos locais e é difícil para os americanos perceber que quando vão ao banco pedir um empréstimo, é o governo que assume a contrapartida de risco. Este tipo de alavancagem é muito comum em todos os aspectos da vida americana: é assim que se financia pequenos negócios, explorações agrícolas, compra de casa, educação, etc.
Os resultados estão à vista: o fracking permitiu aos americanos produzir petróleo e gás natural em quantidade suficiente para baixar os preços mundiais, o que benefia o resto do mundo menos os países produtores de petróleo. Outra tecnologia cujo custo foi bastante reduzido foi a produção de energia solar que agora é tão competitiva em termos de custo como a de outras fontes de energia mais sujas. É muito provável que num futuro próximo a massificação da produção de painéis solares a baixo custo seja o mecanismo que irá acabar com os preços altos da electricidade em Portugal e tal se deverá ao Tio Sam.
Se vocês me lêem, sabem que nada disto é novo. Aliás, foi assim que eu vim parar aqui ao blogue: por achar que o governo federal americano é o mecanismo dinamizador da economia americana e tem um efeito redistributivo de riqueza, em que os estados ricos pagam impostos que depois são usados para dinamizar as economias dos estados mais pobres. O governo português funciona ao contrário, i.e., é um concentrador de riqueza: as políticas que impõe ao país são as que beneficiam Lisboa.
Como devem calcular, estou a gostar do livro do Michael Lewis, mas houve uma parte com a qual discordei. Foi a parte em que ele cita alguém que trabalhou na USDA (United States Department of Agriculture), que é o Departamento de Agicultura aqui do burgo, e que acha que talvez haja 50 pessoas na USDA que saibam usar Excel (página 122), sendo que a USDA emprega cerca de 100 mil pessoas. Basta ir a duas bases de dados da USDA ou pensar em alguns dos relatórios publicados para saber que tal não pode ser verdade.
A PSD Online: Production, Supply, and Demand é uma app do Foreign Agricultural Service, uma unidade da USDA, que tem a produção de certas commodities agrícolas da maior parte dos países do mundo. As pessoas que fazem o trabalho de compilar os dados que alimentam a PSD online não só sabem Excel como muitos usam outro software mais sofisticado como SAS e Stata.
A QuickStats é outra base de dados bastante detalhada da produção agrícola dos EUA, mas que é mantida pelo NASS, o National Agricultural Statistics Service, também dentro da USDA. Se vocês brincarem com esta base de dados (seleccionem dados de "Survey" em vez de "Census" porque o census de agricultura só é feito cada cinco anos e os inquéritos são semanais, mensais, ou anuais dependendo do tópico), irão encontrar dados para todos os estados e, em alguns casos, para os condados dos EUA (ou unidades geográficas equivalentes, por exemplo, paróquias na Louisiana)--há cerca de 3,142 nos 50 estados. É lógico que nem todos têm produção agrícola, mas a maioria tem.
Todos os meses, a USDA publica o relatório WASDE: World Agricultural Supply and Demand Estimates, que contém informação acerca das commodities mais importantes -- este relatório é baseado nos dados que estão disponíveis na PSD Online e uma das opções para fazer a descarga das tabelas do relatório é em Excel.
O relatório de produção agrícola (Crop Production da NASS), publicado ao mesmo tempo que o WASDE, complementa-o com detalhes acerca da produção a nível dos estados e também pode ser descarregado em ficheiros de valores separados por vírgulas (extensão .csv), que podem ser vistos em Excel (os ficheiros .csv estão comprimidos numa pasta Zip).
Outra agência do Departamento de Agicutura é a FSA (Farm Service Agency) que gere os diferentes programas de apoio aos agricultures e que, como contrapartida, exige que estes forneçam dados acerca das suas práticas agrícolas, em especial a área agrícola em produção: quanta área plantaram em quê, que área plantada falhou, etc. As folhas de cálculo são bastante grandes e detalhadas, mas estão disponibilizadas na página de Internet da FSA.
A NASS tem uma sede e 46 gabinetes espalhados pelo país: é impossível que haja menos de 50 pessoas só na NASS que saibam como criar um ficheiro de Excel, mas a pessoa que fez este comentário trabalhava na agência de Desenvolvimento Rural da USDA, logo pode ser que aí não haja um uso tão intensivo de dados. Ou se calhar o Michael Lewis percebeu mal e o comentário referia-se à agência e não ao Departamento.
Mas o erro prova o ponto dele: o governo americano é mesmo muito complexo e poucos percebem o que fazem, nem mesmo pessoas com uma capacidade bem acima da média de entendimento o conseguem imaginar.
P.S. Podem ouvir uma entrevista do Michael Lewis acerca deste livro no Fresh Air. O livro é este.
Já li o livro, não é mau porque o Michael Lewis não consegue escrever livros maus, até sobre um assunto aparentemente chato como a transição de Presidências. Entretanto já estou a ler outro livro dele, o Undoing Project.
ResponderEliminarAchei o Undoing Project bastante melhor; apesar de mais longo pareceu-me mais bem investigado, mas o autor admitiu que foi bastante cuidadoso pois não queria decepcionar as famílias dos protagonistas.
EliminarMichael Lewis também se perdeu nas datas. Em 2014 é que Lillian Salerno enfatizou as folhas de cálculo que, como
ResponderEliminar"Administrator, Rural Business Cooperative Service, U.S.D.A.",
criara com o objectivo de
"improve the consistency and accuracy of our performance OUTCOMES when we submit reports to the various OVERSIGHT organizations, such as OMB, USDA’s Office of Budget and Policy Analysis (OBPA), the Office of the Inspector General (OIG), and the Government Accountability Office (GAO)."
Quanto a 2017, data em que cessou funções como
"Deputy Under Secretary of Rural Development, U.S.D.A."
Michael Lewis foi bastante claro:
"Lillian Salerno had observed the TRUMP ADMINISTRATION for a long moment. Virtually all THE PEOPLE TRUMP HAD SENT INTO THE DEPARTMENT OF AGRICULTURE were white men in their twenties. They EXHIBITED NO KNOWLEDGE OF, OR INTEREST IN, THE PROBLEMS OF RURAL AMERICANS. She decided there was only one thing to do: move back to Texas and run for office."
PS: No meio destas passagens, reencontrei um útil manual americano sobre Avaliação do Desempenho Individual, que tanto pode ser obtido gratuitamente aqui:
https://www.opm.gov/policy-data-oversight/performance-management/measuring/employee_performance_handbook.pdf
como comprado aqui:
https://www.amazon.com/Handbook-Measuring-Employee-Performance-Organizational/dp/1478162481