sábado, 6 de dezembro de 2014

Uma progressividade progressiva II

Em Portugal, o IRS é obrigatoriamente progressivo, artigo 104.º da Constituição da República Portuguesa.

A progressividade do IRS visa, essencialmente, garantir uma redistribuição do rendimento que, de acordo com algum critério, seja justa. Quão progressivo deve o IRS ser é uma questão essencialmente ideológica. É normal, e até desejável, que partidos diferentes prefiram opções diferentes. Mas não faz sentido nenhum que o mesmo partido defenda uma progressividade diferente para famílias com filhos e para famílias sem filhos.

Uma redução de impostos que seja redistributivamente neutra, ou seja, que mantenha a mesma progressividade, exige  que o aumento percentual do rendimento líquido seja semelhante para todas as classes de rendimento. Ou seja, se para um rendimento de 100.000€ um casal que tenha dois filhos abate 2000€ no seu IRS, então para um rendimento de 50.000€ o casal deveria abater 1000€.

Quem defende que por cada filho se abata um valor fixo do IRS está, na realidade, a defender uma alteração da progressividade dos impostos nas famílias com filhos. E fá-lo no sentido de querer que nas famílias com filhos a progressividade seja maior do que nas famílias sem filhos. E, sinceramente, não consigo perceber qual é o critério de justiça social que tenha esta implicação. É isto que gostaria de ver discutido por parte dos responsáveis de política económica do PS.

PS Declaração de interesses. Tenho duas filhas e se tivesse melhores condições financeiras tentaria ter a terceira. Ou seja, sou dos casos em que uma reforma fiscal deste género pode fazer a diferença.

PPS Em abono da verdade, devo dizer que mais importante do que o quociente familiar seria ter escolas públicas decentes, o que me permitiria poupar o dinheiro que gasto nos colégios e tirar as minhas filhas da bolha social em que vivem.

4 comentários:

  1. "E fá-lo no sentido de querer que nas famílias com filhos a progressividade seja maior do que nas famílias sem filhos."

    Em termos de taxa média, sim; em termos de taxa marginal, não.

    Outra maneira de vermos a coisa é que a proposta do PS é muito parecida a simplesmente pagar um "abono de família" por cada filho (não é igual porque à mesma só beneficia quem paga IRS, mas anda lá perto)

    Agora, imaginemos um cenário em que há um imposto progressivo sobre o rendimento e, a dada altura, o governo decide dar um subsidio igualitário a cada menor de 18 anos (pago à respectiva família). Será que esse subsidio iria fazer que a progressividade total do sistema de impostos e transferências fosse diferente para famílias com e sem filhos?

    Agora admito que pegar exactamente do argumento da "progressividade" talvez não seja o melhor: se o PS simplesmente dissesse "se vamos reduzir o IRS para aumentar a natalidade, é melhor aumentar a dedução especifica em vez de introduzirmos o ceficiente familiar, porque é melhor para as famílias com menos rendimentos" (a ideia é a mesma, mas evitar usar a palavra "progressividade" muda a dinâmica da discussão).

    "Ou seja, sou dos casos em que uma reforma fiscal deste género pode fazer a diferença."

    No geral (claro que varia caso a caso) eu diria que a diferença que o aumento da dedução à coleta pode fazer é mais certa que os efeitos do coeciente familiar - com a dedução à colecta é certo que (desde que se pague IRS) se vai ganhar (ou deixar de pagar) esse dinheiro; no caso do coeficiente familiar, se eu estou a perceber bem como funciona (e não estou certo de que esteja), uma família até pode não ganhar nada com ele (enquanto uma família mais pobre e outra mais rica beneficiam) - basta o coeficiente não ser suficiente para a fazer baixar de escalão que não ganha nada (dá-me a ideia que os beneficios do coeficiente familiar tenderão a ser em zigzague, beneficiando sobretudo quem está na parte de baixo de cada escalão de IRS)

    [Eu estou assumindo que o coeficiente familiar funcional tal e qual como o coeficiente conjugal, só que com um número maior; posso estar errado, e se assim for invalida muito do que escrevi para aqui).

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    1. "Em termos de taxa média, sim; em termos de taxa marginal, não."

      Evidentemente.

      "Outra maneira de vermos a coisa é que a proposta do PS é muito parecida a simplesmente pagar um 'abono de família' por cada filho"

      Exactamente. E se querem dar abonos, dêem abonos. Se querem fazer reformas fiscais então façam reformas fiscais. São duas políticas diferentes que terão efeitos diferentes.

      " basta o coeficiente não ser suficiente para a fazer baixar de escalão que não ganha nada (dá-me a ideia que os beneficios do coeficiente familiar tenderão a ser em zigzague, beneficiando sobretudo quem está na parte de baixo de cada escalão de IRS)"

      Não, não é assim. Mesmo que não mudes de escalão a percentagem do teu rendimento que está sujeito à taxa marginal mais elevada diminui.Esse efeito ziguezague não é minimamente substancial. Se fizeres simulações com um sistema fiscal simples (ou seja, sem grande deduções fiscais, como o era na proposta original, se bem me lembro, que era outra das suas virtudes) verás que o efeito percentual sobre o rendimento líquido é bastante estável.

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    2. Miguel, considera os seguintes escalões, aos quais terias de aplicar a sobretaxa:
      0 0.145
      7000 0.285
      20000 0.37
      40000 0.45
      80000 0.48
      Se considerares um casal com dois filhos que ganha 70000 e dedução específica de 4104. O cálculo de IRS seria:
      ((70000/2-4104-20000)*0.37+(20000-7000)*0.285+7000*0.145)*2+sobretaxa=17503+sobretaxa

      Usando o coeficiente de 0.3 por filho, ficarias com
      ((70000/2.6-4104-20000)*0.37+(20000-7000)*0.285+7000*0.145)*2.6+sobretaxa =14984 +sobretaxa
      Repara que não houve mudança de escalão e o efeito foi substancial.
      Agora, claro, as coisas nunca são tão simples porque tens sempre limites máximos a atrapalhar as contas. Por exemplo, penso que está escrito que o benefício fiscal nunca pode ser superior a 1250€ no caso de 2 filhos, ou coisa do género. Mas penso que ficaste com a ideia de base.

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  2. Sinceramente já tenho andando às voltas com isto e consigo ver os dois lados do problema. Não seria de considerar, em alternativa a uma dedução à colecta, uma dedução específica (i.e. ao rendimento colectável)? "Pegando" nos 500 euros do PS e admitindo a menor taxa de IRS (14,5%), isto daria um abatimento ao rendimento colectável de 3450 euros/filho. Ao abatimento ser ao rendimento colectável e não à colecta, deixar de existir uma regressividade para as famílias de maior rendimento. Para efeitos práticos, é idêntico ao pagamento de um abono, com a excepção de apenas incidir sobre contribuintes.

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