Sonhou com uma planta que só floria dentro das
entranhas de homens ou mulheres. No sonho não viu se eram de homens ou mulheres
os estômagos onde vislumbrou as pétalas escarlates que nunca encontrara em
outras plantas e outros lugares.
Por isso, acordado, as barrigas que abriu de
alto a baixo eram indiferentemente masculinas e femininas. Em becos mal
iluminados e debaixo de pontes quase todos os dias se descobriam novos
cadáveres. Bêbedos tardios e operários madrugadores tropeçavam em tripas
espalhadas pelas ruas e vomitavam sobre os próprios pés. Escorregavam em bílis
e sangue e gritavam de horror. Mesmo quem está habituado aos mortos não se
habitua a todas as maneiras de os ver mortos. Dos mortos tranquilos de corpos
incólumes espera-se que tenham tido uma morte do mesmo modo tranquila. Dos
mortos de corpos retalhados sabe-se como morreram, com violência. E de morrer
sabe-se que, havendo que passar de vivo a morto, quem assim passa vive enquanto
passa, pois está vivo antes e só depois morre, e não lhe é indiferente se a
morte é violenta ou tranquila. Sofre-se imaginando o pior, feridas e cólicas e
fogo e água. Espera-se imaginando que simplesmente o coração pára. Entre
desmaiar de dor e adormecer, sabemos o que preferiríamos. Depois de cortados os
ventres, espera que as pétalas e as folhas se sigam às vísceras excarceradas,
que vão saindo. Que até ontem isto não tenha acontecido não o fez desconfiar do
sonho. Até ontem, não deixou de pensar que nos sonhos vemos as coisas que temos
de procurar. Mulheres com asas e caudas de peixe, homens de cabeças enterradas
na areia, montanhas de ouro, cavalos voadores. As fontes inesgotáveis e o
movimento perpétuo. O bem comum e o perfume superlativo. O fim do mundo, o fim
do espaço, o fim do tempo. O princípio de todas as coisas. O umbigo do
universo. O universo olhando para o seu próprio umbigo. É pelo umbigo que
começa o corte. Depois, continua para baixo. Depois, sobe. Em nenhum momento
olha para as caras daqueles a quem não deseja mal. Mas deseja mais a flor da
planta que viu num sonho do que não deseja mal àqueles a quem mata para
roubá-la. Até ontem matou sem qualquer dúvida. Mas hoje, e apenas porque alguma
vez teria que ser, o sangue que lhe encharcou os pés lembrou-lhe que as pétalas
vermelhas que viu no sonho podiam afinal ser não mais do que uma forma poética
de representar o líquido vital que em nós circula. Má poesia, certamente, mas
aos sonhos não se exige que sejam de bom gosto.
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